Depois de muito tempo na mata convivendo com os índios,
um homem voltou para sua cidade.
Numa noite, ele teve um sonho quando lhe apareceu um anjo prevenindo-o que a
água daquela cidade estava envenenada e seus habitantes estavam enlouquecendo.
Sugestionado e apavorado pelo sonho, nos dias seguintes ele misturou-se com
a população, atento a tudo que via e ouvia, para constatar a veracidade
daquele sonho premonitório. Estarrecido, ele assistiu a tantas distorções
dos valores da vida. Vítimas das promulgações divulgadas,
o povo enfileirava-se para participar das jogatinas legalizadas pelo governo.
O ar estava irrespirável por bafo de cerveja. Muitas mulheres estavam
masculinizadas, trajando-se como homens, copiando seus hábitos e vulgarizando-se.
Alguns homens, além dos cabelos longos e penteados com os chamados rabos
de cavalo—que gracinha—usavam brinco numa das orelhas.
Num filme nacional, horrorizado, ele assistiu um atorzinho inconsequente, inconsciente
das possíveis consequências ao sujeitar-se a ser amante da própria
filha
Vendo o acesso às conduções –os trens por exemplo—aquilo
lhe pareceu um debandar de cavalos.
Dia e noite, o convívio familiar era interrompido por pedintes mal educados
e até exigentes.
Legalizados e localizados entre residências, alguns butecos davam guarida
à desclassificados que atemorizavam os moradores das imediações
quando exteriorizavam suas bestialidades congênitas.
Pelos absurdos e pela postura passiva e omissa dos habitantes tradicionais daquela
cidade, como sendo coniventes com o que ocorria, isso, decepcionou aquele homem
que para aquela cidade voltou.
Ainda mais quando ouviu a conversa de duas crianças. “A mamãe”
disse uma delas “foi com papai no motel.”
Outras mães entregavam seus filhinhos para religiosos que lhes catequizavam
com pedofilia.
Muitas crianças, facilitadas por greve escolar, viviam perdidas nas ilusões
das diversões eletrônicas, que, por ironia, estavam instaladas
próximas as escolas. Alguns jovens infernizavam a vida dos moradores
com suas motocicletas barulhentas. Também, barulho insuportável
era nos bailes de jovens, cujas bandas pareciam ter pacto com o demônio.
Latidos de cachorros se ouvia de dia, de noite e pela madrugada, demonstrando
assim, a inteligência dos seus donos.
Dissociadas dos valores reais, uma grande parcela da população,
agrupava-se em torcidas organizadas de seus clubes e quando de seus egressos
ou regressos das competições futebolísticas, a balbúrdia
às vezes era acompanhada de vandalismo num “salve-se quem puder.”
Na televisão, as novelas pareciam ter um único intento: destruir
o moral do povo a partir de sua célula—a família.
Entretanto, aturdido com aquela circunstância, aquele homem resolveu relatar
tudo o que lhe havia sido revelado no sonho: a água envenenada e suas
conseqüências.
Altruísta e solidário, acreditava naquela oportunidade como o
cumprir de uma importante missão perante seus semelhantes, conscientizando-os
sobre a calamidade a que estavam expostos.
Tanto falou, tanto alertou até que, tornou-se impertinente. Todos que
ouviram-no falar da água imprópria para beber, pensaram que ele
estava louco. No jardim de uma praça, abriram uma torneira d’água
e forçaram-no a beber daquela água tanto repudiada por ele. A
seguir, o efeito provocado pela água fê-lo exteriorizar-se assim:
--Calé a de vocêis! Chega de amassa amassa, soltem-me! Que bicho
deu hoje? Quais foram os números da sena? Algum aposentado já
desmaiou na fila de espera? Hoje minha irmã vai sair com uma mina que
sustenta.
Meu irmão abandonou a minha cunhada e foi morar com um homem. Quando
tem eleição? Eu quero votá eu quero votá. Meu avô
toma viagra e ainda vai à zona. Tá passando Big Brodher na tv?
Eu quero assistir. Eu preciso dar dízimo, como é que eu faço?
Bebê mijo, cura mesmo alguma doença?
Então... todos aqueles que estavam à sua volta, assim se exclamaram:
--Milagre! Milagre! Deu certo. Ele bebeu da nossa água e sarou. Viva!
Deus se já louvada... aleluia, aleluia.