“Deixem que os mortos enterrem seus mortos”.
Essa frase por si mesma, contundente como é, explica todo seu significado
para poucos que se esforçaram para entendê-la, para compreenderem
e avaliarem a grande maioria dos desentendidos dela. Se não se soubesse
serem eles desentendidos, seria estranho perceber a ausência de críticas
deles contra o autor da frase. Como? Poderiam perguntar. Ele que era todo amor,
o perdão, era a salvação, como não se condoeu com
a morte de um ser humano, como não sentiu pesar pelos familiares do morto?
Se o morto, familiares e parentes fossem pecadores, não veio Ele para
perdoá-los e resgatar seus pecados? Por que nem ao menos participou de
um ritual para o encaminhar d’alma do morto para Deus?
Essas perguntas se surgissem seriam heréticas, mas, não foi tanto
por isso que não surgiram.Pessoas sempre estufaram o peito quando repetiram
a frase, tentando demonstrar terem-na entendidos e, enaltecendo o autor dela
por tão profunda sabedoria, entretanto, nunca se aventuraram a traduzi-la
com a verdade que trazia.
Tudo ficou apenas pela frase “deixem que os mortos enterrem seus mortos”
deixando de lado a importância dos vivos que eram mortos enterrando seus
mortos.
Quem chegou até aqui e não sendo morto, terá
tido subsídio para suas reflexões para seu auto-avaliar e se questionar
se precisa ser mais vivo.
Mas, continuando, viajando pelos efeitos das instituições funerárias,
elas estão por aí também para atender o público
nas exigências acima do necessário e básico dos sepultamentos.
Alguns primam muito pelo luxo com que seus entes queridos devem ser “homenageados”
pela passagem de suas mortes. E na morte, vemos muitas coisas para um e quase
nada para outros quando pela morte, também fica patente a desigualdade
social. Alguns facilmente quitam os encargos de um sepultamento quando outros
ficam endividados e até devendo favores.
No ritual por intenção do envio de alma para junto de Deus, quando
sendo para quem foi proeminente enquanto vivo como ainda são seus familiares,
não é difícil vermos um “intermediário”
oficial. Quando das ausências de proeminências, é muito fácil
vermos substitutos consagrados para o ritual e Deus nada tem contra.
O autor daquela frase tão profunda sabia da importância
do ritual pela intenção das almas dos falecidos? Tais rituais,
Ele, os incentivava? Se literalmente se entender a frase, parece que não.
Tais rituais não foram criados bem depois de sua morte? Então,
supõem-se serem mais sábios que Ele seus inventores, para confortarem
as famílias no desespero de suas perdas irreversíveis.
“Buscai a verdade e ela vos libertará”. Mas, quem de nós
deseja mesmo a verdade?
Ela não seria decepção ao deixar-nos nus diante da realidade
que nos deixaria vazios sem o amor que tanto temos pela nossa roupagem?
Não seremos nós os mortos que enterram seus mortos? Nós,
corpo e alma, também somos matéria das matérias e só
nos diferenciamos delas porque as pegamos e moldamos conforme nossa conveniência.
Esquecemos das conveniências da alma e as tornamos como morta neste mundo
das sensações e por isso, procuramos compensações
onde adquirimos “roupagens” para ela viver por aqui e se apresentar
depois de desencarnada em “outro mundo de roupagens daqui já confeccionadas”.
Se nós somos os mortos, apenas imitamos os nossos mortos.