Atualmente, a complexidade, as responsabilidades do viver, as preocupações cada vez mais sendo invasoras, a incidência sufocante de informações desnecessárias, a multiplicidade de distrações, tudo há tornar o tempo tão curto e rápido como se ele tivesse extensão e velocidade. Esse viver enroscado, embaraçado, embaralhado, fez com que o relacionamento humano perdesse a sensibilidade e a pujança do romantismo de outrora. Você leitor, que é desta e de uma geração bem posterior àquela donde “os tempos” eram outros vai agora se deslocar para lá. Para a última maquininha (trenzinho) de Caieiras para o seu Bairro da Fábrica de Papel, este, o “pulmão” da região. Não tão tarde da noite, ainda calmo, sereno e lento como ela, o tempo no relógio se revela como não sendo ainda vinte e três horas. Os três vagões ou bondes de que se compõe à maquininha são abertos nas laterais e de uma à outra é a extensão dos bancos fixos de madeira. Em dias de chuva, ela invade de ambos os lados os extremos dos bancos. É quando a preferência é sentar-se no meio deles, isso, quando o número de passageiros é reduzido e possibilita. A pequena locomotiva chamada de “máquina a óleo” faz um “bom tempo” que ela substituiu a anterior que era a lenha, ou melhor, a vapor. Esta, com seus apitos agudos piiiiiiiiiiiii piiiiiiiiiiiiiiii, espalhava suas fumaças e brasas que invadiam os vagões e se via os passageiros em si mesmos dando tapas ah ah ah ah, para se livrarem daquelas partículas fogosas, que, além de queimar a pele e ardendo-a, também faziam furos na roupa. Era muito engraçado. Hei leitor está gostando deste regresso? É nostálgico, não? Agora, não perdendo o “fio da meada”, a maquininha iniciou sua partida. Embarcado nela está um personagem que vai representar a todos daquela época romântica. Ele vai viver o que você, leitor, não viveu, aproveite. Deixando Caieiras, a paisagem com prédios amarelados pelo tempo, são eles departamentos de trabalho da Indústria local. Os estridentes ruídos das rodas da maquininha nos trilhos parecem ter características que identificam os lugares por onde ela passa. À esquerda, no fim do prédio das oficinas onde de imediato o passar por ele já é a ponte sobre o Rio Juquery, nela, o ruído é inconfundível. Mas, o olhar se distrai à direita, entre algumas árvores e sobre o coreto, onde se vislumbra parte da Igreja Nossa Senhora do Rosário. À direita e por detrás do rio, o velho cinema e salão de baile, palco de muitos romances e emoções ficou para trás. Rua dos Coqueiros com casas a direita e a esquerda, janelas fechadas ocultando a interior intimidade familiar. As emendas entre os trilhos são somas de toc-toc que se misturam ao barulho do motor da maquina a óleo que, ocupando o espaço antes vazio, disputa com o silêncio a vez de também se existir sob o manto negro da noite. Além dos seus passageiros, a maquininha transporta também seus diferentes jeitos de ser, suas aspirações, ilusões, alegrias e decepções e, muito mais, a incerteza de seus destinos esquecida que é pela proeminência de seus sentidos no presente. Bairro da Cerâmica, única parada de entremeio com Caieiras e o Bairro da Fábrica. Aqui e antes, a maquininha contornava um lago de águas paradas que mais parecia um pântano. Aterrado agora, a topografia local ficou maior utilizável, os trilhos da maquininha foram deslocados excluindo assim a antiga curva e onde a estaçãozinha era também a portaria para os funcionários da Fábrica de Celulose, como assim era chamada. Um bonito verde gramado servia de moldura para um pequenino lago artificial que refletia o azul do céu, que, com seus peixinhos vermelhos eram companhia constante para o busto de um personagem histórico da família proprietária destas terras. Logo ao partir da “Cerâmica” com o rio à esquerda, à direita entre poucas casas parecendo adormecidas como seus moradores está o início da subida conhecida como “Estrada da Serrinha”. O percurso segue até uma curva à esquerda e quando da curva à direita, a reta é entre barrancos com mata se alastrando através dele e uma fileira de casas à esquerda, estas tendo o nome de “As Casas da Linha”. Iluminação tênue pelos postes com insetos e mariposas debatendo-se ao redor das lâmpadas. Depois da última casa, a visão se estende mais ao longe onde o rio se alarga e se alastra onde está à vila de nome Charco Fundo. Com iluminação tímida, só seus contornos obscurecidos são visíveis. Hei leitor, esqueceu-se do personagem da maquininha que está e ainda vai viver emoções antigas para nós? Vamos “ver e escutar” os pensamentos dele agora que o trajeto da maquininha é por dentro do negro da escuridão? Hummmm... Ele é um apaixonado. Está voltando de um namoro e ainda está hipnotizado. Abraços e abraços, outros e outros mais apertados ainda, beijos, tantos beijos, bocas em desespero se esfregando, se mordendo, rostos se esfregando em rostos, dedos entre cabelos, beijos nos olhos, sussurros, afagos, bocas que se grudam, não há pausa, corações pulsando forte, mãos procurando mãos, abraços apertados como que querendo um puxar para dentro de si o corpo do outro, beijos outra vez, mais outros cada vez mais longos, olhos fechados como se eles é que sentissem a eclosão da paixão, do amor, respiração mais forte, o mundo deixou de existir ou parou e nem os dois sabem quem são. Tudo isso ele trouxe para mentalmente reproduzir no escuro e no ritmo dos sacolejos da maquininha como outros românticos e apaixonados, nisso, lhes foram iguais. A intimidade máxima entre um moço e uma moça, se existia era raro. Isso serviu como causa para amores duradouros. Mas, o personagem se distraiu um pouco de sua amada permitindo assim perpassar por sua cabeça várias cenas saudosas. São de moças simples, corretas, românticas, de vestido ou de saia, cabelos longos, tranças num trançado parecido ser mágico que sempre se tem a vontade de tocar, pegar. Desembarcaram na plataforma da “Estação Passado” e desapareceram. A maquininha da noite também transportou quem em silêncio esteve revivendo suas amarguras, suas dores tão doidas da perda de um amor. Nessa agonia, nessa dor interior que de dentro se transpassa para fora pelos olhos tristes, o desejo era que a maquininha nunca chegasse ao seu destino, se infiltrasse no negro da noite e com ela desaparecesse com a chegada da aurora. Luzes à vista! É a Vila da Curva. São casas à direita e, como aqui são altos e mais longos os ruídos estridentes nos trilhos por causa da curva. Agora, o final do trajeto está perto parecendo que isso afasta pensamentos, no mais, sendo eles divagações sobre recordações provocadas pela memória. A última maquininha chegou e estacionou ao lado da plataforma da “Estaçãozinha de Concreto” iluminada. Agora todos os rostos dos passageiros são discerníveis e alguns demonstram estar sonolentos. Daqui se ouve o peculiar barulho das máquinas de papel em atividade. Leitor dê a última olhada para o personagem que criamos para nos brindar com a nostalgia de um trajeto noturno agora só real na lembrança. Coitado, ele ainda está atordoado pela mulher, pelo amor dela e pelas suas infindáveis carícias que o acompanharam na última maquininha da noite. Vamos desfazê-lo e voltar ao nosso tempo. Com todas as deformidades existenciais que temos em nossas consciências, somos intrusos aqui nesta magia deste passado. Voltemos então e adeus última maquininha da noite.