Antigamente diziam que as criancinhas daquele lugar onde existia uma fábrica de papel eram anjinhos. Desde tenra idade elas aprendiam com os adultos que os bebês eram trazidos pelas cegonhas. Até fotos de bebês sendo trazido por cegonhas eram vistas em revistas daquela época. Com o passar dos anos e com as crianças tendo idade para saber que outro transporte mais moderno de bebês veio substituir o transporte deles pelas cegonhas, elas já estando velhas tiveram suas aposentadorias merecidas. Mas aquelas crianças ao irem crescendo, aos poucos iam se desfazendo da tamanha responsabilidade que era a de serem anjos. Mais os meninos do que as meninas, eles iam para quase todos os lugares, para as vilas daquele lugar e descalços como era costume naqueles tempos de vida simples.
Lá no Bairro da Fábrica de Papel todos cumpriam direitinho os seus papeis na vida que o destino lhes escolheu. Já havia terminado a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e os meninos nem souberam que ela existiu e muitos adultos também não. Naquele lugarzinho desconhecido pelo mundo inteiro os únicos “soldados” que existiam eram os homens e as mulheres que em “tropa” iam e vinham de seus trabalhos na fábrica de papel desfilando pelas ruas de chão batido armados de suas responsabilidades. Mas, um homem por ter tido “baixa” precocemente não pertencia àquele batalhão de soldados (trabalhadores da fábrica). Agora aqui resgatando sua lembrança.
Seu nome era Marcos Muniz e ele havia sofrido um acidente quando parte de uma de suas pernas fora cortada pelas rodas daquele trenzinho chamado de Estrada de Ferro Perus à Pirapora pertencente à Fábrica de Cimento Portland de Perus que existia no Bairro de Perus da Capital de São Paulo. O Marcos tendo numa das pernas uma prótese de madeira, ele com suas muletas caminhava com dificuldade pelas ruas daquele local. Talvez por isso pensasse que seu futuro não lhe iria ser diferente do que o seu presente lhe estava sendo, triste, num viver sem esperanças. Talvez por isso o se embebedar lhe fosse o único prazer e o fazer se esquecer de sua sina.
Sempre ele era visto sentado ou mesmo deitado em algum lugar. Onde mais ficava era num “larguinho” que existia ao lado de donde era a sorveteria do Sr. Alfredo Satrapa e depois a oficina mecânica do muito conhecido Maximo Pastro. Local este que era passagem obrigatória para quem morava na Vila Leão, Vila Pereira e Vila Nova quando se dirigiam para o trabalho na fábrica, para o Armazém, para o clube ou para embarcar na maquininha, assim como era chamado aquele trenzinho que fez parte da vida daquele lugar, hoje só de recordações.
Aqueles meninos que haviam sido criancinhas e anjos, inclusive, costumavam rodear o Marcos para irritá-lo com provocações porque já sabiam da reação dele. Mas antes disso até que havia alguma conversa amistosa com ele. Entretanto o perceber a aproximação de alguma senhora que vinha a passar por eles, os meninos provocavam e irritavam o Marcos com insinuações que ele não gostava. Daí, os palavrões que aos gritos jorravam daquela boca santa e de longe se faziam ouvir, faziam com que qualquer senhora séria e de boa família até “perdesse o seu rebolado” ao passar por aquele local intelectualmente poluído (risos). Para os meninos que eram bem educados era um divertimento muito engraçado.
Nesta época em que vivemos os palavrões fazem parte do cotidiano. Muitas moças entre si ou pelo telefone celular, sem se preocuparem com quem esteja por perto que possa não gostar, elas com prazer pronunciam aquele apelido do pênis que é mais comum. Ouvem-se também rapazes e moças “naturalmente” pronunciando em voz alta aquele mais famoso apelido do esperma. Aqueles garotos daquele lugar encantado que não era mais sobrevoado pelas cegonhas e nada se pareciam com os anjinhos que tinham sido eles aborreciam demais o Marcos. E ele como não podia se defender e nem podia correr atrás dos garotos para dar-lhes umas palmadas, só tinha mesmo como recurso exteriorizar palavras de baixo calão. Naqueles tempos a palavra “empatia” ainda não havia chegado por lá. Mas, podia se imaginar sendo o Marcos com o seu triste destino, entretanto, quem de lá assim se imaginou para melhor compreender a situação dele?
Altino Olimpio