No fim da década de cinqüenta do século passado, uma família vindo da cidade de Esteio do Rio Grande Sul, veio morar em Caieiras, São Paulo, no Bairro da Fábrica e na Rua do Filtro Rein, se é assim que se escreve o nome daquele local de tratamento d’água. A família Machado era muito simpática constituída pelos pais, três moças e um rapaz, Marly, Margô, Mirna e Moacir. Marly, a primeira dos filhos do casal contou-me certa vez o motivo de sua abstinência por consumir carne. Ela quando criança ainda assistiu a morte de um boi quando ele foi “murchando” pelo sangue que lhe foi exaurindo. Nunca esqueceu aquela cena e ela lhe foi o motivo para nunca mais comer carne.
Recuando mais no tempo, estou menino no quintal da casa onde nasci e onde passei minha infância naquele “lugar mágico” como assim se expressou a amiga Mirna Machado no site www.caieiraspress.com.br do Jornal Eletrônico “A Semana”. O quintal é muito grande como são todos os das casas pertencentes à Indústria Melhoramentos de Papel, cedidas gratuitamente para moradia de seus funcionários. De costas para a cozinha de casa, à minha direita vejo a “cerca viva” de leguste, que, serve de divisa com o quintal do vizinho, o Senhor Francisco Pastro e família. À esquerda, o vizinho é o Senhor Antonio Polatto e família, separado também por uma cerca viva igual. De um vizinho a outro é a extensão do gramado para se estender roupa para secar e ele termina no barracão à esquerda que é para depósito de lenha a ser queimada no fogão para o preparo das refeições diárias. Defronte ao barracão e a partir do gramado se inicia a horta onde minha mãe cuida com carinho dos canteiros que mais parecem ser um jardim. A horta passa pelo pé dos deliciosos caquis e termina no alinhamento com o pé de laranjas azedas onde depois dela tem uma vala para as águas pluviais que desembocam num ralo conectado com a canalização do esgoto vindo da Vila Nova. Depois do barranco formado pela vala, entre ela e a cerca do galinheiro está a pequena parreira de uvas, brancas e rosadas. O galinheiro vai de uma divisa à outra estando entre os dois nossos vizinhos já citados. Um imponente abacateiro está por detrás da cerca posterior do galinheiro onde também estão várias bananeiras tendo em seus meios uma amoreira próxima a um barranco, onde, acima dele meu pai plantou mandiocas e batatas doces até onde terminam pelo quintal, isso num dos lados do fundo do quintal da família Lucieto da Vila Nova.
A amoreira é muito visitada por sabiás, rolinhas, por sanhaços e tesouras, pássaros estes sempre presentes nas épocas dos sanhaços. Coleirinhas ou papas-capim misturados com tico-ticos competem em seus cantos pela relva crescida entre um carpir e outro do quintal. Os tizius pretos e são muitos, quando pousados em um ramo de arbusto que se movimenta com seus pesos, eles cantam “tizi, tizi, tizi tiziu” e dão um salto quando o ultimo som, tiziu, é cantado e isso se repete muitas vezes. Os beija-flores também sempre estão por aqui com seus vôos rápidos, com suas paradas no ar próximas às flores anteriores aos frutos e é quando posso ver suas cores tão lindas embelezando seus olhinhos e seus bicos compridos. Agora estou vendo e me vendo na frente de casa. Estou no jardim olhando para a rua de terra e do outro lado dela tem a cerca antes do barranco íngreme que desce até o Rio Juquery, onde as bananeiras dali quase sempre estão envoltas pelo verde dos ramos ou cipós de machucho ou xuxu, com grandes folhas que se alastram pelo chão. Um pouco antes da cerca e sobre ela estão os fios condutores de eletricidade apoiados em postes de ferro. No alto dos fios, muitas andorinhas em seus trajes de gala estão pousadas lado a lado, enfileiradas quietinhas como numa pausa para poderem ficar próximas umas das outras como se fossem enfeites do paraíso. Por falar nisso, os meninos daqui são orientados ou informados que não podem matá-las com estilingue porque elas são filhas preferidas de Deus.
De volta ao quintal estou dentro de uma das cenas mais bonitas da infância. Estou depois do pé de laranja azeda e nas imediações da vala de antes da parreira de uva de antes do galinheiro. Comigo estão dois cabritinhos peraltas. Estamos brincando de pega-pega e eles correm, saltam, se contorcem no ar antes de voltarem ao chão. Sobem e descem pelo barranco da vala e vez ou outra eles vem ao meu encontro para me darem cabeçadas. Seus chifres bem pequenos ainda pouco se sobressaem para serem visíveis. Quando os consigo pegar, os acaricio, pego-os no colo e esfrego meu rosto pelo macio dos pelos de suas cabeças sentindo seus pequenos chifres. Eles se desvencilham de meus abraços e voltam a correr, a saltar, ir e voltar e sobem no pequeno barranco outra vez, pulam para perto donde estou, fogem outra vez e emitem tão singelo som: Mééééééé, méééééé, mééééééé. O mundo parou e com ele os pássaros emudeceram seus cantares como para assistir um espetáculo de pureza, de inocência pueril e de carinho sincero entre menino e cabritinhos, amiguinhos então.
Vamos avançar alguns meses quando o parecer bater palmas das borboletas multicolores foi para a felicidade pueril. Estamos na época do Natal, quando, presentes são ganhos e o amor se faz mais exigido. Época de ganhos e não de perdas. Foi quando vivenciei a impotência de ser criança. Nada adiantou chorar, implorar contra o que era costume, era comum entre os adultos e considerado normal. Impotente para evitar, para impedir, eu perdi meus amiguinhos cabritinhos. Eles foram mortos para serem devorados na festa de Natal. Na alegria da comemoração minha tristeza permaneceu calada. Pareceu-me que para sempre meus amiguinhos sacrificados iriam hospedar-se nos recônditos de minha memória como testemunhas e exemplos de como a distância sentimental entre crianças e adultos é imensurável no que se relaciona com os animais.
Muitos adultos se permitem ver em seus atos tidos como cruéis por crianças sem se importarem se, possam ou não, prejudicar seus condicionamentos. No meu não ficou trauma. Mas, na amiga gaúcha sim, aquela que lhe permitiram assistir o matar do boi. Hoje ela vive numa cidade próxima da capital de São Paulo e continua vivendo sem a necessidade de consumir carne. O fato real sobre as peraltices com os cabritinhos eu o escrevi em homenagem a ela. Sendo gaúcha, será que ela gosta de churrasco? Que pergunta boba e inoportuna.