O Dr. Estanguelão vem exigindo algumas histórias sobre a antiga cidade de Caieiras para serem contadas no Jornal “A Semana”. Ele não quer mentiras, mas, as verdades a serem escritas, como se sabe, irão contribuir para que os leitores chamem de louco quem as escrever e eu estou morrendo de medo. É, usei a palavrinha mais chata que conheço, aquela do verbo presente da primeira pessoa do singular: “eu”. É desagradável, porém, irei usá-la porque, sendo mais pessoal, é para destacar com mais realismo e sem hipocrisia, as histórias nas quais encontro-me incluso.
Naquela trégua entre o término do curso escolar e a idade de quatorze anos quando fatalmente teríamos que trabalhar, e isso, na Fábrica de Papel Melhoramentos, tínhamos muito tempo à nossa disposição para nossas criatividades pueris. De duas varas de bambu para pescar, com muito zelo preparei uma. O meio da vara ficou sendo a junção das duas cortadas e uma delas com o gomo de diâmetro maior, servia de encaixe para a outra de diâmetro menor. Com ela preparada com linha e anzol, num belo dia, meu amigo e vizinho José Polatto, convidou-me para pescar na lagoa do Bairro da Ponte Seca. Nós sendo da mesma idade, o Zé com o seu carisma sempre me lembrava do filme e de um dos três patetas e eu não sabia porque. Naquele sol quente, e armados com minhocas, fomos combater os peixes. Ao passarmos pela ponte de madeira e aqui não devo me deter em detalhes sobre o local, o Zé teve a idéia de pescarmos embaixo do “paredão”. Isto convém explicar. O assim chamado paredão era naquele local, uma represa do Rio Juquery cujas comportas quando abertas desaguavam as águas do rio de cima para o rio de baixo e o desnível entre eles tinha mais ou menos uns cinco metros, se não me engano. E lá fomos pescar no rio de baixo junto ao “paredão”.
A descida até o rio era muito íngreme, um barranco mesmo, e tivemos que descer segurando pelas raízes das arvores que estavam expostas. Com dificuldade nos acomodamos bem próximos ao paredão e atiramos nossas iscas ao rio e estava mesmo “dando peixe” pois, já estavam “pinicando” bastante. Não me lembro porque dei as costas ao rio para ficar olhando para acima do barranco e tão de repente escutei: TCHIBUM. Voltei-me de frente para o rio e cadê o Zé? Tinha sumido. Inclinei-me até bem próximo das águas do rio e percebi que naquele lugar ele era fundo quando vi o cabelinho do Zé submerso remexendo-se n’água. Ai ele subiu à superfície e eu gritei para ele: ZÉ, PEGA NA MINHA VARA! PEGA NA MINHA VARA! E ele pegou, ainda bem, mas, comprida, a minha vara era aquela de encaixe no meio e conforme ele a agarrou, ela se destacou, e o Zé outra vez, TCHIBUM, mergulhou e sumiu no inferno do desespero me deixando na agonia. Revi o cabelinho dele dançando naquelas águas do apocalipse e pelas bolhas percebi que estivera pedindo socorro ao Rei Netuno. Quando ele novamente surgiu à tona d’água, meu anjo da guarda mostrou-me uma raiz de árvore. Com uma das mãos segurei-me nela e estendi a outra para o Zé, e assim, tirei-o d’água. Só soltando a frase “vamos embora”, com muita velocidade ele subiu pelo barranco. Naquele momento dificultoso eu tentei “subir atrás dele” mas, ao mesmo tempo em que ele subiu pelo barranco eu não consegui subir, tamanha foi a sua pressa de abandonar aquele local que poderia ter sido o último da vida dele.
Abandonamos nossas varas lá junto ao paredão e foi um desperdício porque, a minha vara era muito bonita. Porém, o mais triste foi termos abandonado aquelas minhocas dentro da lata e só de lembrar sinto remorsos. E o Zé, coitado, ele precisava se esconder para ninguém saber daquele drama e poder contar para o pai dele e ai, ele, como sempre, iria apanhar com correia de máquina de costura. Ao nível do rio de cima, caminhamos até o início da ponte de concreto que dava acesso à estaçãozinha da maquininha e, lá pulamos por sobre uma cerca. Naquela mata pretendíamos ficar até o secar da roupa do Zé. Escolhemos uma clareira donde batia o sol e donde se avistava o rio. Sentei-me ao lado do amigo “encorujado” e como não existe nada mais engraçado do que uma pessoa com medo de apanhar, deprimida, vencida, fracassada, olhando para o Zé, desatei a gargalhar. Ele, como se nada estivesse entendendo, vez ou outra me mirava com o rabo e eu, aliás, com o rabo dos olhos eu quis dizer, e isso, reforçava muito mais o meu ataque de riso enquanto eu gemia: “ai minha barriga, ah, ah, ah, ai minha barriga ah, ah, ah, ta dando um nó nela, ah, ah, ah, ah”. Contorcendo de dores rolei pelo chão. Igual sofrer, nem de leve o Zé sofreu naquele dia. Bem, voltamos para nossas casas e nossas mães não viram nenhum peixe e nem as nossas minhocas que, àquela altura já deviam estar bem moles. Ainda tenho outras aventuras do Zé para contar.