O mundo de quando éramos crianças, era pequeno. Os dias eram longos naquele lugar que, vivíamos restritos como se só ele fosse o mundo. Muitos dos meninos daquela época, até na escola iam descalços e assim continuavam até ao anoitecer, quando antes de irem para a cama, a “obrigação” era ter que lavar os pés. Banho completo de bacia, só aos sábados. Aos fins de semana, lá no clube, no único lugar de entretenimento, existia o salão de cinema que também, vez ou outra, era local para bailes e outros eventos. O evento de minha formatura do 4º ano primário foi lá quando tinha eu 10 anos de idade, isso, em 1952. Não me lembro se antes ou depois desse ano, uns artistas se apresentaram no palco do salão. O cantor Sólon Sales cantou a música “La Vie En Rose” ou “A Vida Cor de Rosa” e foi a primeira vez que eu a ouvi. “Quando estou nos braços teus e tu nos braços meus, a vida é cor de rosa...” Um pianista brincalhão tocou “Tico-tico no Fubá” e dedilhando pelas teclas do piano, depois da última delas continuou a dedilhar e como não mais existiam teclas, ele caiu pelo chão, provocando muitas gargalhadas no auditório lotado. Foi um espetáculo emocionante e foi o primeiro que eu assisti e nunca mais esqueci.
Aos sábados e domingos existia sessão de cinema, sempre, com a exibição de dois filmes. Como só existia um projetor, quando terminava o desenrolar do rolo de um filme, o mesmo era interrompido e as luzes do salão eram acesas e assim ficavam por uns cinco minutos ou mais, enquanto o filme novamente era enrolado, para depois, ser substituído por outro rolo a projetar suas cenas, dando continuidade à exibição do filme na tela. Isso causava alguma irritação porque, às vezes, o filme era interrompido num momento de muita ação e era preciso aguardar sua seqüência para se saber como a ação iria terminar. Era quando, muitos assobiavam demonstrando seus desagrados. Sempre antes de começar a sessão de cinema, ouvíamos músicas e uma da qual me lembro era “Que será” cantada pela Dalva de Oliveira. “Que será, da minha vida sem o teu amor, da minha boca sem os beijos teus, da minha alma sem o teu calor...” Depois do som de uma compainha, as luzes se apagavam e começava a exibição do primeiro filme.
Um dia, logo pela manhã, uma notícia “correu” naquele Bairro da Fábrica. “O salão pegou fogo, o salão pegou fogo!” Muitos foram lá no clube para ver. As paredes ainda estavam de pé e entre elas a fumaça subia até desaparecer no espaço. O piso do salão que era de assoalho, todo ele ruiu e a madeira com que era constituído ainda estava fumegante no porão que ficava sob o assoalho. Naquele porão estavam guardadas fantasias e muitos apetrechos que eram usados nas festas de carnaval. Comandados por um italiano, o Sr. Piacente Civitarese que se fantasiava de Rei Momo, os brincalhões daquela época, desfilavam pelas ruas do bairro antes de participarem dos bailes carnavalescos do salão. Era um espetáculo digno de se ver. O incêndio do salão comoveu a todos num sentimento de perda, como se o salão pertencesse a todos e a cada um em particular. Comentou-se muito que a diretoria da Indústria Melhoramentos de Papel iria reconstruí-lo e, como antes, o Clube Recreativo Melhoramentos continuaria tendo-o à sua disposição para seus eventos.
Que nada! Além de ter demorado a construção de um novo salão no mesmo local do antigo que sofreu o incêndio, o novo prédio foi erigido para, em seu pavimento inferior, ser um amplo restaurante para os funcionários da indústria. Na parte superior, o novo salão para eventos, com um acabamento mais moderno para a época, aconchegante e bonito, poucas vezes foi cedido ao clube para que nele promovesse bailes para seus associados. Para isso, os diretores do clube tiveram que continuar promovendo-os no chamado “caramanchão” que, depois do incêndio do salão, tiveram que ampliá-lo e adaptá-lo para festas e bailes.
Com o passar do tempo o novo salão ganhou o nome de “Salão Nobre” e depois o diminutivo de “Nobrinho”, se bem me lembro. As casas do Bairro da Fábrica aos poucos foram sendo demolidas e o Clube Recreativo Melhoramentos desapareceu como desapareceram todos os moradores daquele lugar. O prédio do restaurante e salão, anteriormente conhecido como “salão Nobre”, ele, sozinho, continua imponente naquele lugar, a lembrar que, lá existiu um clube e muitos amigos que o freqüentaram. O Salão Nobre substituiu o “salão que pegou fogo”, mas, nunca conseguiu substituir o “fogo das fortes emoções” que repercutiram naquele velho “salão dos sonhos” da minha puberdade. O Salão Nobre veio a existir como sendo um marco, veio para simbolizar mudanças, veio para sinalizar outros tempos, foi o início destes nossos, tão vazios de “construções” de recordações. A vida é assim, transformações são as suas normas.