Caieiras, daqueles meus tempos de paraíso, sempre me via, como era costume quando garoto, caminhando descalço entre as ruas de terra e por entre as matas do lugar onde nasci que se chamava Bairro da Fábrica de Papel. Existia uma vila afastada do bairro e ela tinha o nome de Ponte Seca. Lá tinha uma lagoa onde os garotos e os moços costumavam nadar. Lembro-me de um dia de sol em que estivera nadando na lagoa com um amiguinho, mas, o tempo o desfez da minha lembrança, não mais sei quem era ele. Na volta para casa, a partir de onde nadávamos, o trajeto era por um caminho bem estreito margeando um lado da lagoa, com ela à esquerda e a mata à direita. O caminho terminava num enorme e alto barranco onde por sobre ele era e ainda é o leito ferroviário pertencente à Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, como era intitulada. Lá de cima junto aos trilhos via-se toda a lagoa, a água ainda com cor de lama removida do lugar onde mais ficávamos nadando, as taboas (ô) sendo plantas aquáticas que flutuam e as árvores da mata emoldurando de verde aquele quadro que espelhava o branco das nuvens e o azul do céu na água imóvel da lagoa onde o silêncio se refresca.
Naquele dia diferente dos outros, não pudemos de imediato atravessar por sobre os trilhos para descer pelo barranco do outro lado donde ficava a Estradinha da Ponte Seca que, vindo ou voltando dessa vila, passava por baixo da via férrea. Aquela construção para suportar o peso dos trens por sobre a estradinha de terra, na verdade sendo um pequeno túnel para a estradinha e como ali não havia água e os trens passavam por cima, o local passou a ser chamado de ponte seca e esse nome veio a ser também o nome da vila próxima dali, Vila da Ponte Seca.
Não pudemos passar por sobre os trilhos porque, um trem de viagem longa, ou melhor, um trem expresso como era chamado, estava parado naquele trecho onde estávamos. Várias vezes, já havia visto trens se cruzarem naquele local, os com destino a São Paulo e os de sentido oposto para Jundiaí. Porém, nunca havia visto tão de perto um trem expresso parado e com passageiros. Não imaginava que era tão alto. Recuei até o início da descida do barranco íngreme para ver melhor uma parte do interior do trem. O teto dele era muito bonito com as lâmpadas acopladas por dentro de um encaixe de vidro na ponta de um ferro curvo e retorcido grudado no teto. Os passageiros junto à janela pareciam todos alegres. Fui caminhando beirando o barranco e um vagão diferente por dentro me chamou a atenção. Era o vagão restaurante. Dois homens, um defronte ao outro conversavam e, vez ou outra, levavam algo à boca. Estavam se alimentando enquanto conversavam. Bem vestidos vi que estavam de terno e gravata. Fiquei olhando-os numa alternância entre curiosidade e admiração. Eles tinham me visto, mas, pareciam fingir que não. Eu dando importância para eles e eles não se importando comigo. Um sentimento de ser insignificância percorreu-me o corpo.
Naquele auto-induzido estado de inferioridade, precoce ainda para um menino descalço e trajando calça curta, me dei conta que eu era pobre. Naquele acordar para a minha realidade estava me sendo instalado o conceito das diferenças. Sentindo-me algo deprimido e não mais querendo ser notado, disfarçando indiferença continuei a olhar para aqueles homens “com ares” de bem sucedidos. Eles pareciam ser o que quiseram ser. Eu não sabia o que viria a ser e nem sabia o que queria ser. Pelas suas posturas eles pareciam conhecedores de tudo o que eu não conhecia. O que eles sabiam, conheciam, era importante. O que eu como criança conhecia não era importante para adultos. Num mesmo mundo crianças e adultos vivem em mundos diferentes ou então, o mesmo mundo é que se revela como sendo um para as crianças e outro diferente para os adultos.
O trem continuava parado. O amiguinho distraído parecia não saber que estava no mundo. Atirava na lagoa pedregulhos retirados de sob os trilhos. Os círculos concêntricos provocados n’água em ondas se ampliavam, se alastravam e faziam dançar a vegetação aquática que se sobressaia por sobre a água. Eu, voltando para os ainda pouco percorridos trilhos da minha vida, continuando a olhar para o trem, meu pensamento me via sendo a criança que era habitando um dos mundos, aquele que os homens esqueceram depois de se mudarem para o mundo deles. Como na lenda do paraíso, a queda se deu quando o casal se percebeu nu e com isso se viu adulto. Crianças vivem integradas com a natureza e ambas sendo mútuas e relacionadas, se desconhecem como apartadas. O homem, como diz essa palavra, aquele que deixou de ser criança e adquiriu o discernimento, ele se vê como independente da natureza. Age como se ela fosse para ele e não ele para ela. A queda está no nunca mais o homem ter se reatado com a natureza e esse é o pecado original que perdura enquanto ele não se reabilitar voltando a ser criança como em sua inocência é o não existir separação.
O trem apitou e lento recomeçou seu movimento. Um por um os vagões foram passando e me deixando. O ruído do trem me deixou pensando desconfiado que eu também já estava viajando por outros trilhos da minha vida. As diferenças que significam comparações são os primeiros bilhetes de passagem e só de ida. A natureza logo iria ser abandonada e ser substituída pela natureza das diversidades do mundo das adversidades donde todos ficam envolvidos e ninguém é absolvido. O último vagão do trem foi se distanciando, se distanciando até desaparecer na curva. O trem foi embora levando passageiros alegres e mais importantes que um menino descalço deixando-o se sentir no vazio e a distância. Distância... ... Isso me significa tristeza. O Trem da Ponte Seca foi uma estação que passou pela minha vida. Depois dela muitas outras passaram e já me encontro pensando na última. Averiguando a minha bagagem repleta de inutilidades que o discernimento adulto acumulou, elas por cima encobrem só o pouco que teria sido útil.
Era uma vez, um trem expresso ou, um trem rápido como também era conhecido, parou entre as Estações de Caieiras e de Perus. Dois meninos voltando do banho de lagoa da Vila da Ponte Seca não puderam passar por sobre as linhas do trem com ele lá parado e tiveram que esperar pela sua partida. Então, os meninos... ... ...