Lembro-me da primeira vez que fui a um velório. Tinha seis a sete anos de idade, morava na roça e morria de medo dos mortos. Já minha mãe, apesar de seus oitenta anos, não perdeu um até hoje, só para ver quem chora mais e se o defunto está bem vestido, corado ou pálido. Mas voltando ao meu caso, fui ao funeral de uma velhinha, nossa vizinha de sítio, com noventa aninhos, uma criança ainda. Lembro-me daquela noite escura e do tempo armado para chover, enquanto relampejava e trovejava muito, um verdadeiro cenário de terror.
Para chegarmos lá, tínhamos de atravessar um canto de mata fechada e uma pinguela sobre um riacho, e esta, por si só já me metia medo, devido à lenda da sucuri que engolia bois, crianças e cachorros.
Naquela noite, minha mãe sabedora do medo que eu sentia, resolveu dar um basta e disse-me: - para perder o medo de defunto você precisa beijar o pé do infeliz. Quase caí de costas, pois ela falava sério, e acreditava piamente nesta “simpatia”. A partir daquele momento passei a sentir pavor ao invés de medo, mas não poderia dar tanto na cara, porque desde pequeno éramos ensinados a acreditar que homem que é homem não chora.
Nossa caminhada até ao velório parecia interminável, e a cada passo dado, sentia como se o coração fosse sair pela boca. Não tinha como desistir, nem chorar, porque senão os primos mais velhos iriam zoar muito, ou seja, eu estava no mato sem cachorro. E por falar em cachorro o nosso corajoso “guaipeca” de nome “Chulico” nos acompanhava, acuando um tatu de vez em quando, e eu me perguntava: como ele pode ser tão valente e não ter medo? Bem que eu poderia ser como esse pestinha, quero só ver se ele terá coragem de encarar a falecida e passar na pinguela da sucuri.
Ao chegarmos ao tal funeral deparei-me com uma cena jamais apagada de minha memória. Era apenas um bico de luz bem fraquinho; quatro velas acesa ao redor do esquife de cor roxa; um véu preto cobrindo o rosto; um chumaço de algodão em cada buraco do nariz e um lenço branco, tipo uma tiara, amarrado no queixo e na cabeça, provavelmente para ajudar no fechamento da boca. Estava vestida de preto e usava meias marrons, daquelas fininhas que dava para ver as varizes azuis do pé. Um detalhe importante, - quando a gente olhava o corpo numa distância de três metros, a única coisa visível era o nariz da velhota, por sinal muito avantajado. Aí vinham na mente as histórias de bruxas contadas pelo meu pai e tios. Para completar o cenário o corpo era quase todo coberto por “Dálias”, um tipo de flor de cheiro marcante, muito usado naquela época nos velórios do interior de São Paulo. Confesso que até hoje, não suporto sentir o cheiro desta planta.
Era simplesmente hilariante ver minha mãe insistindo para eu beijar o pé da velhinha. Consegui no máximo dar três voltas ao redor do caixão, e só. Meu medo foi crescendo de forma incontrolável e comecei a chorar. Uma senhora, por certo parenta da falecida, ficou com pena de ver-me soluçando daquele jeito, levou-me pelo braço até a cozinha da humilde casa para dar-me um copo de água, e me confortar dizendo mais ou menos assim:
- Não chore meu filho, a nona já era velhinha, estava cansada e sofrendo muito, ela não morreu, ela descansou, já cumpriu sua missão, um dia todos nós vamos morrer também. Voltei mais apavorado ainda imaginando a chegada do meu dia, “se a morte é um descanso, prefiro viver cansado” pensei comigo. Aquele aranzel me deixou com tanto trauma, a ponto de eu passar uns quarenta anos evitando ambiente de velório, pois sempre arranjava uma desculpa para não comparecer. Da volta para casa, foi uma verdadeira tragédia e quase rasgo a saia de minha mãe de tanto agarrá-la.
Deixando o lado cômico da morte, devo dizer que hoje sou espiritualizado, entendo melhor esta passagem para o oriente eterno. Todo mundo quer viver muito, mas ninguém quer ficar velho e morrer. Concordo plenamente com o brilhante ator Paulo Autran, quando disse “Somente a morte nos dá a verdadeira dimensão, de que viver vale a pena”.
E VIVA A VIDA, PORQUE A MORTE É CERTA!
osvaldo.piccinin@apoiorural.com.br