Havia poesia nas palavras do meu avô quando versava sobre a produção de cachaça. Sua paixão por esta centenária bebida, principalmente aquelas produzidas em engenhos artesanais, era do conhecimento de todos que o cercavam.
Na nossa região, estes alambiques, mais conhecidos por “engenhos de pinga”, eram raros, mas os poucos que existiam, produziam cachaça de ótima qualidade.
O engenho que ficou em minha lembrança, situava-se no sítio vizinho ao nosso, mais conhecido por Sítio dos Peruchi. Bem junto à fábrica, entre moendas rangedeiras carcomidas pelo tempo, por onde escorria a adocicada garapa, ficava o tonel da cachaça já produzida.
Tratava-se de um enorme barril de carvalho com capacidade para três mil litros. Uma torneira de madeira por onde saia a aguardente o adornava conferindo-lhe grande charme, apesar da rusticidade.
No cômodo escuro que o abrigava, havia apenas um bico de lâmpada pendente num fio ensebado pelas fezes de moscas caseiras. Suas paredes de tijolos sem reboco e cobertas por teias de aranhas completavam o bucólico cenário. O único móvel existente era um único banquinho de madeira - usado pelo vendedor para sentar - se enquanto enchia os garrafões de meu avô – por sinal nunca menos de meia dúzia.
Um único copo de vidro que parecia nunca ter visto sabão, usado na degustação da purinha, passava de mão e mão e de boca em boca. Gozado que todos os cachaceiros que conheço, emitem um som vindo do fundo da garganta atestando a boa qualidade do produto e quase sempre acompanhado de algum comentário do tipo: Booarraaaaa!
Nossa condução era a carroça do nono. A distância de nosso sítio até ao engenho era curta, mas parecia demorar uma eternidade no pacholento andar do Cigano – seu burrinho de estimação. Saíamos com o sol a pino e voltávamos para casa ao entardecer, e nessa jornada entremeada por uma soneca, eu me deliciava com as histórias contadas por ele - sempre muito engraçadas!
Ele me dizia que, para sabermos se a cachaça era de boa qualidade ou não, tinha que fazer uma coroa de borbulhas no copo quando servida, e esta não poderia se desfazer tão rápido. Descrevia com sabedoria a variedade ideal da melhor cana a ser utilizada na fabricação de uma boa pinga. A Cayana - era recomendada pela doçura da garapa e pela maciez de sua casca.
Parece uma piada conhecida, mas trata-se de um fato verídico. Ao perguntar por que não cheirava a pinga antes de beber, ele, no alto de sua sabedoria etílica, me disse: - Se eu cheirar antes de tomar me dará água na boca, e como gosto de cachaça pura, não cheiro - mando pra baixo direto. Simples assim!
Imagino que aquele ambiente pouco higiênico, sem aconchego e emoldurado numa misteriosa penumbra; às margens de um riacho rodeado de frondosos jequitibás e bambuzais, aguçava o nosso desejo de provar a “marvada”. No meu caso, era só meio copo - o mais que suficiente para tontear um guri de dez anos - e matar os vermes da barriga, segundo meu sábio nono!
Até hoje faço questão de visitar um engenho de cachaça artesanal. O cheiro de garapa em fermentação e o aroma de cachaça pura e sem produto químico emanado do velho tonel de carvalho, me fazem viajar no tempo!
E VIVA O VELHO ALAMBIQUE DE PINGA!
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