Duas eram as porteiras. Uma na chegada do sítio e a outra situada na colônia onde eu morava. E é para esta última, a minha homenagem. Imponente, reforçada e feita de cabriúva durou muitos anos cumprindo sua sina de cartão de visita da nossa colônia. Agüentava mais de meia dúzia de meninos empoleirados em suas tábuas enquanto a abríamos ou fechávamos -, desde que meu pai e tios não vissem esta arte. Segundo eles, nosso peso poderia desalinhá-la.
Apesar de sempre engraxada, nunca perdeu o velho costume de ranger de uma forma parecida com um triste lamento. Seus palanques eram grossos, de madeira de lei, e sua trave, tipo uma tramela, muito fácil de manusear.
Por ali passavam, para nos visitar, as pessoas vindas de longe. Chegavam famílias para morar e outras partiam para nunca mais voltar. Era, portanto um marco da chegada, ou da partida, trazendo tanto alegria como tristeza.
Lá na colônia nasciam muitas crianças e todos os partos assistidos por uma parteira. Era uma senhora alta e simpática, do tipo vozona. Quando a víamos despontar na velha porteira, era sinal de mais criança vindo ao mundo. As balinhas que nos dava, como agradecimento, eram divididas solidariamente entre todos, mesmo que fosse um pedacinho para cada um.
Se por ali passasse um, ente querido, enfermo rumo ao hospital, fazíamos apenas um abano silencioso com as mãos, sendo muitas vezes, acompanhado de lágrimas e soluços. As calças curtas com suspensórios sem cuecas enfiadas no rêgo das bandas e o nariz escorrendo era nossa marca registrada. Para soar o nariz usávamos a costa da mão e a manga da camisa, que depois de uma semana de uso tornava-se um emplasto.
Alguns dos visitantes mais importantes que passaram naquela porteira foram os médicos da família: Dr.Lauro Corsi e seu irmão, Dr.Tarquínio a bordo de um reluzente e estiloso Fordino 29, mais conhecido por pé de bode. Vinham elegantemente vestidos e munidos de seus termômetros, estetoscópios e caixinha de aço inox com apetrechos para injeção -, caso houvesse necessidade.
Achávamos uma coisa do outro mundo vê-los tirando a temperatura e a pressão arterial da nona. Nunca voltavam de mãos vazias. Minha avó mandava matar duas leitoas, dois frangos e colher dois ou três sacos de laranjas para que levassem. Era um gesto de agradecimento muito comum, entre italianada da roça.
Volto lá, de vez em quando, na esperança silenciosa de encontrar novamente tudo o que um dia, ali, deixei. Mas a velha colônia ficou deserta, os amigos todos dali se mudaram ou morreram. Os poucos remanescentes que ainda restam, tinham outra cara - nem os reconheci! O tempo passou. Só restou saudade e as recordações que ficarão para sempre. Tudo mudou. Está tão esquisito que nem parece o lugar onde vivi.
Você minha velha porteira, também não está como outrora deixei, seus moirões foram roídos pelos vermes cruéis do tempo, não posso mais ouvir seus tristes rangidos e nem suas fortes batidas. Jaz caída no chão, em silêncio, respeitando de forma resignada o destino que lhe foi reservado. Quantas boas lembranças você me traz!
Este senhor, o tempo! Quem é ? Um bichinho que corrói nosso corpo em silêncio, nos deixando o vazio da saudade e uma chaga indelével na alma.
“Velha porteira, na realidade você é a saudade, do meu tempo de infância, que não volta mais”!
E VIVA A VELHA PORTEIRA!
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