Pensei muito antes de escrever sobre este singular, lendário, saudoso e rústico veículo de transporte. Participando do progresso desde o período colonial, passando pelo império e presente ainda hoje, em plena era republicana, fez de sua história uma bela poesia encravada na alma sertaneja.
Às vezes chego a pensar que fui um carreiro em outra vida, de tanto que gosto das histórias, causos, músicas e poesias referenciando nosso carro de boi.
Dia desses, numa centenária fazenda, tive o desprazer de ver um deles literalmente apodrecendo no relento. Um filme de longa metragem passou pela minha cabeça. Esquecerem seu passado – pensei! Ninguém mais se lembra que ele transportou sonhos e progressos, que abriu picadas e novas estradas onde se formaram vilas e povoados. Muitas delas, atualmente, grandes metrópoles e famosas rodovias.
Procurei identificar alguns de seus componentes, mas foi em vão. O tempo sempre o tempo... Ajudado pelo sol, pela chuva e pelo ataque dos cupins o transformou num cacareco abandonado e sem vida. Suas rodas de cabreúva e seu assoalho de ipê praticamente desapareceram.
Onde estão seus cocões rangedores feitos da madeira canelão, baraúna, capixingui e outras apropriadas? Indaguei-lhe em pensamento. Silenciaram-se para sempre, tive como resposta também em pensamento. Seu gemido era ouvido há muitas léguas de distância, bem antes que despontasse no espigão. Sua azeiteira, feita de chifre de boi, estava sempre cheia de óleo de mamona, porque seu canto não podia parar. Na verdade, carro de boi que não canta não presta! É uma carroça de duas rodas puxada por bois, assim diziam os velhos carreiros, personagens desta história.
O canto do carro de boi é na verdade, sua alma, é a alma do carreiro. Enfim é o jeito que Deus deu para enfeitar a presença dos bois e dos carreiros pelos caminhos do sertão. Engana-se quem acha que o carro de boi canta de tristeza ou por boniteza, ele canta é por precisão. Sua cantoria é de berço, pois já nasce cantando. Quando encostado debaixo da figueira, sonha com seu próprio canto!
Seja qual for o tom da cantoria entoada, que a bem da verdade se resumem em três: pombo que é médio e macio, gaita que é fino e alto e o baixão que é grosso e grave. Os carros de bois possuem uma linha direta com Deus e com a alma cabocla. Uma pena que esta tradição tanto da construção como do seu uso não esteja deixando herdeiros. Aos poucos sua cantiga vai se tornado amarga e rara. E seus cocões rangedores, chegarão ao fim da poética estrada da vida.
Os nomes dados aos bois eram escolhidos com critério e muito amor: Fumaça, “Maiado”, Formoso, Barroso, Pitanga e por aí vai. Eram escolhidos pela sua raça, bravura, docilidade e cor. Enfim no jeitão de ser de cada um. Eram capados e amansados para carrear ao redor dos três anos e meio de idade. Sempre tratados com carinho e respeito. Carreavam mesmo quando não tinha serviço, senão engordavam, perdiam a força e o traquejo da lida pesada.
Meu avô costumava dizer que carreiro bom não espetava o boi até tirar sangue, apenas ponteava e depois o bicho se mexia só pelo barulho das argolas da vara do ferrão.
Carro de boi e seu carreiro, eu infelizmente não vivi o auge de seus apogeus, nem o glamour de suas serventias. Sinto inveja de quem teve este privilégio! Eu gostaria muito de ter tido a inspiração que tantos poetas e compositores sertanejos tiveram ao render-lhes singelas, mas sinceras homenagens. Mas este é um dom concedido por Deus, à poucos.
Gostaria de ter encontrado palavras mais sábias e poéticas para lhes prestar tributos, mas isso também é para poucos iluminados. Mesmo assim deixo aqui meu respeito por tudo que fizeram para que nosso “Brasilzão” fosse o que é hoje - um grande celeiro do mundo ponteado de cidades e estradas por todos os cantos.
“Carro de boi já vai, gemendo lá no estradão, suas grandes rodas fazendo, profundas marcas no chão, vai levantando poeira, poeira vermelha, poeira do meu sertão”.
E VIVA O CARRO DE BOI E SEU CARREIRO!
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