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15/04/2025
LIPODISTROFIA

Atualizado Há 3 horas

Artur de Medeiros Queiroz nasceu com pouquíssimas células de gordura no corpo. Hoje, aos 34 anos, ele tem percentual de gordura corporal semelhante ao de atletas de alto rendimento.

Pode até soar como algo desejável para muitas pessoas, mas a composição corporal de Artur foi causada por uma mutação genética que, na prática, significou uma vida de dieta rigorosa e uma preocupação constante com a saúde.

O quadro de Artur - raro, com um diagnóstico estimado a cada 1 milhão de pessoas - se chama Síndrome de Berardinelli, ou lipodistrofia congênita generalizada.

Embora a condição tenha características opostas às da obesidade, as consequências da lipodistrofia são, curiosamente, semelhantes aos problemas trazidos pelo excesso de gordura: desregulação metabólica e risco de diferentes doenças.

Para quem tem o quadro, faltam adipócitos — células que armazenam gordura — em quantidade suficiente, e o excesso acaba se acumulando onde não deveria.

 

"Por meio da circulação sanguínea, essa gordura pode se depositar em outros órgãos, como o fígado, o pâncreas e os músculos. Isso pode causar inflamação no pâncreas [pancreatite], acúmulo de gordura no fígado [esteatose hepática] e outros comprometimentos metabólicos graves", explica Julliane Campos, professora da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e especialista em biologia do tecido adiposo.

A depender da mutação genética envolvida e da gravidade do quadro, pessoas com a síndrome também podem apresentar complicações em diferentes sistemas do corpo, como alterações cardíacas e respiratórias, disfunções hormonais que afetam a puberdade e a fertilidade, problemas renais, manifestações na pele e, em alguns casos, alterações neurológicas.

Outra consequência comum é a falta de saciedade, agravada pela limitação na quantidade de alimentos que essas pessoas podem consumir — especialmente os que contêm gordura.

Isso ocorre porque a leptina, hormônio que sinaliza ao cérebro quando estamos satisfeitos, é produzida pelas células de gordura, muito reduzidas nesses pacientes.

A importância do diagnóstico precoce

Natural de Caicó, na região do Seridó, no Rio Grande do Norte, Artur recebeu o diagnóstico cedo.

"Ainda pequeno, as características físicas do quadro já eram bem visíveis, embora muitas das vezes se confundem com uma pessoa desnutrida, e muitos médicos ainda não conhecem a síndrome. Mas minha avó materna teve um filho com essa síndrome, o que facilitou o diagnóstico para mim."

Mas descobrir a doença ainda na infância também trouxe desafios emocionais a Artur.

"Minha mãe vendia salgadinhos, e eu ficava com muita vontade de comer - é difícil entender a restrição quando somos crianças. Tudo fora do 'saudável' era proibido para mim. Meu lanche da escola era sempre o mesmo: maçã, banana e uvas."

"Na escola, cheguei a esconder o dinheiro do lanche dos meus amigos só para não ver eles comendo as guloseimas da cantina. Não era por maldade. Depois, no final do intervalo, devolvia o dinheiro na bolsa. E, por ter um apetite muito maior do que o normal, às vezes acabava sendo deixado de fora de festinhas de aniversário."

Artur também não pode consumir qualquer quantidade de bebida alcoólica, pois seu fígado tinha a função "anormal" de metabolizar as gorduras, o que tornava o consumo dessas substâncias uma sobrecarga fácil para o órgão.

"Não era algo que eu queria fazer de qualquer forma, mas, na juventude, acabou me deixando 'excluído' e com fama de antissocial."

Ele teve apoio psicológico por anos, e também fez terapia de fala e fisioterapia.

"Eu tinha dificuldades de fala, às vezes gaguejava ou trocava letras, e também dificuldades para andar, sempre andava na ponta dos pés. E minha vida melhorou muito ao cuidar da minha saúde mental. O acompanhamento me ajudou a me fortalecer e a criar mecanismos de defesa para enfrentar as adversidades da vida, como preconceito e discriminação, que sempre sofri tanto na escola quanto fora dela."

Na opinião de Artur, as mulheres com a condição costumam sofrer ainda mais preconceito por conta da aparência que a lipodistrofia dá.

"Hoje em dia, eu não passo mais por discriminação como na infância. Mas as mulheres ainda enfrentam muito mais isso. Como a gente não tem gordura, o corpo acaba ficando mais musculoso, com um padrão que muitas vezes é visto como mais masculinizado. E as pessoas ainda têm uma imagem idealizada do que seria o corpo feminino, né? Então, quando veem uma mulher com a síndrome, com um corpo mais definido, mais forte, que lembra o de uma fisiculturista, acabam julgando."

Nos últimos anos, Artur desenvolveu diabetes, mas manter a alimentação regrada na maior parte do tempo evitou complicações mais graves. Ele descreve a necessidade de consumir apenas o que é saudável como uma questão de sobrevivência.

"Há pessoas com lipodistrofia que, ainda bem novas, já enfrentam problemas sérios, como diabetes, precisam tomar insulina, e também podem ter complicações no fígado, tipo cirrose, ou nos rins, muitos precisando de hemodiálise. No meu caso, sempre consegui controlar bem."

A prática constante de exercícios físicos também faz parte da rotina de cuidados de Artur — e é essencial para quem tem o diagnóstico.

Manter-se ativo ajuda na sensibilidade à insulina, já que durante a atividade física as células musculares aumentam a captação de glicose, sem a necessidade de insulina, tornando o corpo mais eficiente no uso da glicose disponível no sangue, o que reduz a resistência à insulina e diminui o risco de diabetes tipo 2.

Além disso, o exercício contribui para controlar os níveis de gordura no sangue, aumentando o HDL (colesterol bom) e diminuindo os triglicerídeos e o LDL (colesterol ruim), o que reduz o risco de doenças cardiovasculares.

Para quem tem lipodistrofia, o exercício também é especialmente importante por ajudar a reduzir a gordura visceral, que é a gordura acumulada ao redor dos órgãos internos, como fígado e pâncreas, e que está diretamente ligada ao risco de doenças metabólicas e cardiovasculares.

 

'Doença dos magros': a origem da lipodistrofia congênita generalizada

A síndrome foi batizada em homenagem ao endocrinologista paulista Waldemar Berardinelli, que descreveu a doença pela primeira vez em 1954.

Embora novas pesquisas tenham surgido desde então, sua baixa incidência faz com que ela ainda seja bastante desconhecida no Brasil.

A lipodistrofia tem origem genética e, para que a síndrome se manifeste, a pessoa precisa herdar obrigatoriamente um gene com a mutação tanto da mãe quanto do pai.

Isso significa que, se os pais forem parentes e compartilharem a mesma herança genética, a chance de ambos transmitirem o gene mutado — e a síndrome ocorrer nos filhos — aumenta consideravelmente.

É por isso que, em algumas regiões, casos da doença estão associados a casamentos consanguíneos, como entre primos.

No Rio Grande do Norte, um estudo feito em parceria entre a UFRN e a atual Associação Brasileira das Pessoas com Síndrome Berardinelli e outras Lipodistrofias (ABSBL), mostrou que o Estado tem cerca de 44 pessoas vivas com o quadro, o que representa uma prevalência de 32,3 casos a cada 1 milhão de habitantes – número significativamente maior do que a média mundial, que é de 1 caso por milhão.

A colonização portuguesa teve um papel importante no surgimento da síndrome na região, por conta de um fenômeno conhecido como "efeito fundador".

De acordo com um livro sobre o tema produzido pela professora Julliane Campos e outros pesquisadores da UFRN, os primeiros habitantes do Seridó, por volta de 1720, eram portugueses vindos do norte de Portugal e dos Açores.

Essas famílias, ao se estabelecerem, passaram a se casar entre si, o que era comum na época como forma de manter as riquezas dentro do próprio grupo familiar.

Esse alto índice de casamentos entre parentes fez com que alterações genéticas presentes em alguns indivíduos se espalhassem, contribuindo para a permanência e a disseminação de mutações associadas à lipodistrofia.

As famílias tinham origem também em outros Estados como Paraíba, Pernambuco, Ceará e Minas Gerais.

Há diferentes formas de lipodistrofia. De acordo com a professora Julliane Campos, na forma generalizada, que é a mais grave, os pacientes podem apresentar alterações em até quatro genes ligados ao metabolismo — ou seja, genes que regulam a formação dos adipócitos ou o próprio processamento da gordura.

"O que esses casos têm em comum é que, com os genes mutados, ocorre uma falha na formação das células de gordura. Por isso, esses indivíduos já nascem com uma quantidade reduzida desses adipócitos."

As opções de tratamento para lipodistrofia

Ainda não há um tratamento que proporcione a cura total da síndrome, assim como não existe uma dieta capaz de reverter a lipodistrofia.

O tratamento é focado no controle das alterações metabólicas, como o controle glicêmico, o manejo das complicações e a melhoria da qualidade de vida.

"O tratamento busca tratar alguns dos fatores causados pela doença, como diabetes e problemas cardiovasculares, mas não a doença em si. Por isso insistimos tanto na importância do diagnóstico precoce, ainda mais para as doenças raras, onde os medicamentos são muito caros. Começar a cuidar desde cedo é o que impede complicações graves", aponta Campos.

A professora explica que existe apenas um medicamento aprovado para o tratamento específico da lipodistrofia, que é um análogo da leptina, ou seja, uma substância sintética que imita a ação do hormônio responsável pelo apetite.

"Ele se chama metreleptina e foi aprovado no Brasil em 2023. Estamos aguardando que ele seja liberado para uso amplo nas condições de saúde, mas, por enquanto, apenas alguns pacientes têm acesso a esse medicamento."

Artur conseguiu o acesso ao medicamento em 2016 por meio de uma ação judicial.

"Na época, o remédio não era reconhecido pela Anvisa e era muito caro: uma dose custa mais de R$ 2 mil. O processo não foi simples. passei por uma perícia em Brasília e tive que defender que o medicamento me traria bons resultados. Infelizmente, nem todos os pacientes conseguem esse tratamento."

'Levo uma boa vida e agradeço por isso'

Artur conta que, apesar de a condição exigir atenção constante e poder levar a quadros graves se não for controlada, ele leva uma vida ativa e independente.

"Eu não tenho limitações. Moro sozinho, viajo com frequência. Claro que essas atividades exigem cuidados — e o cuidado sempre vai ser necessário —, mas posso dizer que levo uma vida muito boa e sou grato por isso."

Hoje, Artur é servidor público, tem uma boa remuneração e afirma não enfrentar dificuldades para viver de forma independente. Também está cursando doutorado em Educação, Ciências e Matemática na Universidade Federal do Paraná e aproveita para viajar, sua atividade favorita, sempre que pode.

"No ano passado, por meio do doutorado, tive a oportunidade de fazer um intercâmbio e passei seis meses em Portugal. Foi um sonho. Estive distante de tudo: da minha família, dos meus médicos, mas, graças a Deus, não adoeci", conta.

Ele diz ter esperança de que a doença se torne mais conhecida e que os diagnósticos sejam cada vez mais assertivos e realizados cada vez mais cedo - uma forma de melhorar a qualidade de vida dos pacientes e de tornar o que é "diferente" mais reconhecido.



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