Hoje quero contar a história de três gerações de mulheres de uma mesma família, que ousaram quebrar as regras impostas segundo os padrões estabelecidos cada qual em sua época.
Tudo começou por volta dos anos de 1940, quando uma menina de apenas 7 anos de idade, juntamente com mais 6 irmãos, ficaram orfãos.
A matriarca da família, no caso a avó, uma italiana que regia com mãos de ferro seus filhos e netos, determinou que as meninas orfãs (ela e sua irmã) fossem internadas num colégio de freiras para receberem, a educação adequada “para o seu tempo”.
E foi assim que menininha, passou 8 anos de sua vida longe dos seus irmãos, pai e entes queridos, apenas recebendo visitas semanais e nas festas de final de ano, quando elas podiam sair do tal convento, sim porque na verdade, dali elas sairiam muito bem preparadas para serem excelentes esposas e donas de casa, ou ficariam como freiras.
Nenhuma das irmãs tinha vocação religiosa.
Elas conseguiram sair de lá quando a mais velha estava com 19 anos e a mais nova com 15.
Foram separadas, a mais nova foi morar com uma tia, numa fazenda, já que fazia prendas exímias como bordadeira e poderia executar esse trabalho nos enxovais das moçoilas casadouras, filhas dos mais abastados fazendeiros.
E foi pelos lindos trabalhos dela, que uma senhora da alta sociedade de São Paulo, convidou-a para que fosse com ela, para bordar os monogramas e brasões da família no enxoval de sua filha que estava se preparando para casar.
Assumindo total responsabilidade pela mocinha perante a família dela, a senhora levou-a então para a Capital, onde ela achava que viveria um dos seus sonhos de conto de fadas.
Foram meses e meses bordando, bordando...
Ela ficava deslumbrada com o movimento da casa, com muitos empregados e o vai e vem das pessoas com os tecidos, as sedas, os linhos ingleses, enfim todos os preparativos para o acontecimento mais importante da mansão: o casamento da herdeira mais velha.
Havia por lá também, um burburinho de rapazes na beira da piscina, entre os filhos da senhora aristocrática e seus incontáveis amigos durante as tardes de puro lazer em que estavam acostumados.
E aconteceu o previsto!
Enquanto a menina bordadeira deixava seus dons nos finos tecidos, com o canto dos olhos, arriscava espiar para aqueles belos rapazes, verdadeiros consagrados “senhores faço nada”, e apaixonou-se por um dos amigos do mocinho da casa.
E ele que já tinha percebido os lânguidos olhares da menina, aproximou-se com sua genuína arte de conquistador.
Não demorou muito tempo para qua a mocinha caísse nos seus encantos e como consequência de sua ingenuidade, engravidou.
Naturalmente o rapaz não contava que ela fosse neta de uma poderosa italiana, que munida de muita garra, colocou o mocinho defronte a um delegado e o fez reparar rapidamente o “mal que tinha feito à sua neta”.
Casaram-se então: ela com 16 anos e ele 21.
Tão logo nasceu a criança, que faleceu com 7 dias de vida, o rapaz cansou da vidinha de casado e voltou para boemia. Obrigado a trabalhar, dividia seu tempo entre a obrigação de sustentar a família e as noites em farra e bebedeira nas esbórnias da época.
A novata esposa devia seguir a “sabedoria” das mulheres mais velhas e cuidar da casa e do próximo filho, que chegou logo.
Mas passado o tempo da fantasia, das poesias e sonhos, o sangue quente italiano e sua personalidade irreverente afloraram em suas veias e ela cansou- se da brincadeira e resolveu que com ela tudo seria diferente.
Primeiro avisou ao senhor seu marido, que não aceitaria aquela humilhação de viúva de marido vivo e que também não lavaria nenhuma peça de roupa dele que aparecesse com cheiro de perfume barato de mulher, e menos ainda, manchada de batom, como frequentemente acontecia.
Naturalmente ele achou engraçadíssima a valentia da mulherzinha que apesar de pequenina mostrava-se, então, brava como vespa.
E não demorou muito para ele entender que ela não estava brincando.
Numa noite ele chegou bêbado, cantando alto, acordando vizinhos e o filho pequeno.
Ela pacientemente esperou ele deitar e dormir profundamente, pegou uma vassoura, daquelas de antigamente que tinha um cabo bem grosso e forte e deu-lhe uma surra, de onde ele não conseguia sair, pois ora ela batia nas pernas, ora na cabeça.
Terminada a coça, ela amparou seu bebê e correu para a casa da vizinha, pois sabia que se ele a alcançasse , a situação ficaria complicada demais.
Durante um bom tempo, ele sossegou o facho.
Mas boêmio que é boêmio, perde as pernas na vassoura, mas não perde o hábito, e ele passou a frequentar a “casa das mulheres da vida” como se dizia antigamente.
Obviamente a bravia esposa descobriu e não se fez de rogada: numa noite deixou seu bebê com a vizinha amiga e foi até a “zona”,e gritou o nome dele (que naturalmente estava lá e se escondeu debaixo da saia de alguma dona).
Como ele não se atreveu a sair e encara-lá, ela decidiu dar asas aa alguns tijolos empilhados em frente ao estabelecimento.
Arremessou -os, quebrando as vidraças das janelas e causando a maior confusão, fazendo com que os senhores que ali estavam saíssem correndo de lá pois sabiam que a encrenca estava armada, era melhor mostrar a cara para a senhora brava lá de fora, do que irem parar na delegacia.
E foi exatamente isso o que aconteceu: todo mundo foi para o chilindró.
O delegado esculachou o marido safado, avisando-o que se novamente ele fosse para a”zona”, seria preso de verdade, e ainda cumprimentou a esposa pela coragem, dizendo que se houvessem uma dúzia de mulheres como ela, a”zona da cidade”, com certeza fecharia.
Essa história só terminou realmente quando por volta de 1958, ela cansou de fato, e com três filhos, separou-se apesar dos protestos da família.
Ela argumentava que preferia ser chamada de “Mulher desquitada” do que de “corna mansa “.
Dos três filhos, 2 são mulheres e sou uma delas.
A filha mais nova, casou-se cedo também. Seu marido era um bom rapaz, e a amava muito.
Tiveram a primeira filha e até aí estava indo tudo relativamente bem.
Quando ela engravidou novamente, parece que ele começou a cansar da vidinha monótona, e pouco a pouco o “trabalho” no escritório ocupava mais tempo.
Numa noite quente de verão, ela cansada de esperar por ele, saiu na janela, viu um amigo de seu marido e perguntou se tinha visto a janela do escritório com a luz acesa(?).
“Dona S, o seu esposo está la no estádio de futebol, eu estava com ele ate agora pouco”!
Pronto, o sangue italiano ferveu, ela pediu para a tia que era vizinha, ficar com sua bebê, e carregando o barrigão de 8 meses, partiu para o estádio de futebol.
Na portaria os funcionários queriam que ela pagasse para entrar, deixando-a mais brava ainda empurrando a porta com barriga e levando junto porteiros, cartazes e tudo o que tinha pela frente.
Como os homens não iam segurar aquela mulher grávida, alguém correu avisar o marido.
Ele entrou no banheiro masculino com a certeza de que ali ela não teria coragem de entrar, e escondeu-se.
Ela não só adentrou, como também abriu porta por porta das cabines, enquanto os homens saiam correndo com as calcas arriadas.
O descabido marido, entre estupefato e incrédulo que a situação pudesse piorar, apanhou de chinelo na frente de quem ousou ficar para ver.
Esse marido tomou vergonha na cara!
Afinal, já tinha uma sogra que fechou uma “zona”, e agora, sua mulher, quase fecha um estádio de futebol
A outra filha mais velha demorou um pouco mais para descobrir que o seu “imaculado marido” era santo do pau ôco.
Depois de receber por meses telefonemas anônimos avisando que o seu marido era safado, ela resolveu averiguar.
Não demorou muito para flagrar um momento de descuido numa conversa telefônica um tanto íntima com uma senhoura.
Bom, nesta época os telefones celulares já existiam e bastou uma olhada na conta para saber que constantemente ele ligava para um número e ela numa rápida chamada descobriu se tratar de uma mulher.
Óbvio que ele sempre se defendeu com veemência, alegando calúnia de seus oponentes profissionais, às investidas de alerta-lá.
Sem pensar muito, ela entrou em seu carro e chegando na empresa onde ele trabalhava, “gentilmente” pediu para chamá-lo na na portaria.
Ele desceu com o nariz todo empinado, com cara de destemida fera, questionando sobre o que ela fazia em seu local de trabalho ( santa igreja do imaculado ) e, antes que ele pestanejasse, com a delicadeza de uma leoa enjaulada, deu seu ultimato avisando que ele teria que dar uma explicação para aquelas ligações até meia noite.
Ele já espumando de raiva, e, sem querer explicar nada, pede que entre no carro na intenção de contê-la.
Estupidamente ele vira e deixa-a falando sozinha.
O sangue italiano subiu-lhe às ventas, ela gritou para ele voltar, e ele ofereceu um riso de escárnio como resposta.
Ela então engatou a primeira marcha no carro e partiu para cima dele.
Quando ele ouviu o barulho do arranque, correu.
Mas não a impediu de derrubar a portaria da empresa, as pilhas e pilhas e pilhas de garrafas d’agua (era um depósito) e fazer muitos funcionários fugirem para não serem atropelados, pela “doida da mulher do chefe”, como ela ficou conhecida.
Essa história também não terminou bem: depois de constatar que de fato, ele era um “falso bom marido”, ela deu-lhe um elegante ponta pé na bunda, e anos depois casou-se de novo, com quem vive muito bem, obrigada!
Afinal, esse novo marido, sabe que tem uma sogra que “fechou a zona”, uma cunhada que “quase fechou um estádio”, e uma mulher que derrubou a portaria de uma empresa.
Esta mulher também teve duas filhas.
Meninas de novos tempos, estudadas, formadas, mestradas, esposas, mães exemplares.
Mas...com sangue quente nas veias, porque além de serem descendentes de italianos, ainda herdaram pelo pai, o sangue espanhol, que não é nada diferente na hora da ebulição.
Ciumentas e desconfiadas, elas estavam (e estam) sempre de olho. Os tempos são outros, mas os homens...
E foi assim, que a filha mais nova, um dia desconfiada de um excesso de intimidade entre seu marido e a secretária, ligou para ele perguntando onde estava.
Ele que ainda era estudante, disse estar na faculdade. Mentira, pois ela estava lá e não o encontrou .
Ela entrou rapidamente em seu carro, e entre entradas em ruas proibidas, sinais vermelhos ultrapassados, e mil outras peripécias ao volante, chegou! (ela queria alcançá-lo antes que saísse do escritório às pressas).
De longe ela o avistou já na rua.
A tal secretária, saiu as pressas.
Ele de nervoso, começou a rir.
Num ímpeto de fúria, ela desce do carro e vai para cima dele, procurando vestígios de traição nas roupas. Ela puxou o cinto das calças do marido que acabou de bunda de fora, em plena calçada da cidade movimentada.
Eles ainda estão casados.
Claro, ele tem medo da mulher brava, porque afinal, a avó dela fechou uma “zona”, a tia quase fechou um estádio, a mãe derrubou uma portaria e ela o deixou pelado no meio da rua!
Ficou faltando a história da segunda filha, que vendo todos esses episódios antigos e atuais, tendo um marido que viaja pelo mundo inteiro, e mulheres de “negócios” em contato constante, tornou-se uma verdadeira águia, sempre atenta a qualquer movimento estranho.
Por conta de tudo isso e ainda num momento que estava com um filho pequeno, achou que seu casamento estava um tanto morno e resolveu apimentar a relação, fazendo uma surpresa erótica para o marido.
Deixou o filho com a mãe, vestiu –se apenas com um lindo casaco verde, com plumas na gola e mangas, longo, bem sensual, e foi até a empresa dele.
Chamou-o no telefone.
Ele desceu irritado, sempre estava muito atarefado, foi entrando no carro, nem olhou para o visual caprichado dela.
Ela seguiu dirigindo enquanto ele reclamava e resmungava sobre o trajeto e seu destino (incerto).
Ela entrou num ‘Drive in’, estacionou o carro.
Quando ele finalmente tira o olho do celular, pergunta: - “o que significa isso?”. Mesmo já sem graça, ela coloca uma música, abre o casaco e mostra que está nua.
Não satisfeito, ele “bufa”e fala:”-com essa música?, estou me sentindo numa igreja”.
Pronto, foi o ‘start’...o sangue italiano acrescido do espanhol, ferveu, subiu, explodiu num ataque de insanidade e ela, saiu do carro, com o casaco aberto, com um salto altíssimo , desfilando toda sua beleza natural para os olhos quase esbugalhados dos mortais que tiveram o prazer inenarrável de vê-la em pelo, até que ele a alcança, fecha o casaco do jeito que deu, empurrou-a para dentro do carro, sem saber se batia nela ou se batia a própria cabeça no volante.
Esse também aprendeu, que não se subestima uma mulher.
Principalmente a dele, já que afinal...a avó dela fechou uma “zona”, a tia quase fechou um estádio , a sogra derrubou uma portaria, a cunhada deixou o marido de bunda de fora na rua, e a sua...Bem! ela quase fechou um drive in e ele nunca mais passou naquela rua.
Aqui termino hoje essa história.
Mas ela continua: estas ultimas mulheres já tiveram filhas...
E elas também têm aquele sangue italiano, mais o espanhol, mais o negro, mais o cearense...
Seguramente serão as mulheres bravias, que defendem a dinastia da coragem, do empoderamento, das que podem voar, das mulheres do fogo, das bruxas..
Podem mudar até a nomenclatura, chama-las até de loucas, desequilibradas.
Mas na verdade, o medo ainda é o mesmo: elas são mulheres livres.
Selma Esteticista