Ele entrou na minha sala meio que atropelando tudo o que via pela frente.
Quando o cumprimentei normalmente com um: “olá! como vai?”, ele me respondeu com:
“e aí cara?”
Um jovem, bem novinho mesmo, eu diria que tinha uns 16 ou 17 anos, bonito, mas vestido de uma maneira que era no mínimo extravagante para mim.
Foi logo dizendo que estava ali para fazer uma limpeza de pele, ou melhor, um tratamento, porque sua mãe estava “enchendo o saco” ...linguagem chula, porém normal para um adolescente, e eu logo percebi que ali teria um caso bem peculiar.
Assim que coloquei a musica relaxante que sempre usava no trabalho ele logo reclamou, dizendo que aquilo era coisa de velho e me perguntou se eu não teria um rock...
Como eu disse que não tinha no momento aquele tipo de musica, ele me avisou que na próxima sessão, ele traria os CDs dele.
Bom... fazer o que né? O cliente sempre tem razão.
Fizemos a primeira sessão, entre os berros e xingamentos dele que acabaram me fazendo rir muito... claro que discretamente, até achei que ele não voltaria mais, mas me enganei pois quando terminamos a sessão, ele se despediu dizendo: “Valeu cara, tô de boa, volto quando você mandar.”
E de fato ele voltou. Chegou todo a vontade, trazendo as musicas que ele queria ouvir durante a sessão, as quais sinceramente me deixaram quase surda...
Fizemos seu tratamento durante varias semanas, ele foi ficando meu parceiro como dizia, e conversando fui conhecendo meu exótico cliente.
Contou que viver na casa dele era um “saco” porque só tinha “coroas”, se referindo aos pais e aos avós que moravam juntos, então ele precisava se isolar em seu quarto, para curtir o som e estudar, porque afinal, o seu sonho de consumo era sair para viver a “própria vida”, sem ter que dar satisfações de suas escolhas... Não quis perguntar quais escolhas eram essas, porque os jovens nessa idade, na verdade, nem sabem direito o que querem.
Pelo menos foi o que pensei.
E assim, fomos de sessão em sessão, até que num dia, durante um procedimento onde eu estava usando uma agulha descartável, comum na estética, ele resolveu pegar para ver, foi quando eu me distraí, e ao tentar devolve-la ele foi espetar a mesma na maca e enterrou a agulha quebrando a ponta de aço dentro da minha mão.
Senti uma dor lancinante, e não estava entendendo o que tinha acontecido, quando ele começou a gritar histericamente ao ver o sangue correndo. Eu não sabia se o acalmava ou se pedia ajuda para tirar a agulha enterrada em minha mão direita.
Ao ouvir os gritos, minha funcionária entrou correndo na minha sala, acalmou o menino, deu-lhe água com açúcar e me ajudou a extrair a agulha, com seus conhecimentos de enfermagem que graças a providencia divina, ela tinha.
Depois de tudo mais calmo, eu com um curativo na mão, terminei o procedimento com ele, e tentando aliviar a tensão que ele visivelmente estava, perguntei brincando: “Você não tem AIDS, né?”
Achei que ele também estivesse fazendo piada quando respondeu assim: “Cara... eu não sei... porque sou Gay e nunca usei preservativo quando dou o meu...”!!!!!
Olhei para ele rindo e meu sorriso morreu na hora, quando vi a expressão séria dele.
Era verdade, ele era gay.
E naquela época falar em AIDS era um grande tabu. Para fazer um exame, era todo um protocolo, e as pessoas em volta no laboratório ficavam olhando como se quem estivesse ali fosse um ser extraterreste.
Estou contando isso, porque passei pelo processo todo, pois ao contar para meu médico a situação, ele quis que eu fizesse os exames necessários e me explicou que na verdade, eu fazia parte do grupo de risco.
Foi um constrangimento muito grande na época.
Mas o mais difícil foi convencer meu cliente menino a se cuidar, fazer exames e pedir ajuda psicológica para poder contar a verdade de sua preferencia sexual aos pais.
Nessa hora, lembramos que temos filhos e netos e tentamos agir, como mãe ou amiga.
Não sei se ele conseguiu, porque depois desse dia, ele não voltou e eu respeitei sua decisão.
Ainda penso muito naquele menino, que hoje espero, seja tudo aquilo que sonhou.
Quem sabe um dia, a gente se cruza por aí e vamos rir juntos do episódio da agulhada como ele mesmo definiu.
Ah sim, esqueci-me de dizer, eu não tenho AIDS.
Selma Esteticista