Conto: O Cão e a Roda

Tive um amigo cujo sonho era ser escritor. Disse "tive" porque o danado desandou a beber e fumar descaradamente assim que conseguiu publicar seu primeiro livro. E último. Por consecutivos e desesperados oito anos, visitou editoras e editoras, apresentou seu trabalho a “enilhares” de empresários, perdeu noites e noites elaborando estratégias para mostrar sua obra a alguém que se interessasse.

Brigou com a família por ela, que o acusava de vagabundo. Rompeu com amores antigos, com amizades antigas, com princípios antigos por ela. Vivia sob nuvens negras da depressão por não conseguir levar ao mundo suas palavras. E eram boas e belas palavras, a contar por alguns trabalhos seus que li durante nossa amizade, pois também comigo rompera assim que uma crítica minha um tanto mais forte escapou-me boca a fora. Tinha um bom senso literário e uma boa estrutura de construção de frases e idéias, expressava-as com clareza, mesmo as filosoficamente não tão plausíveis assim. Aliás, "filosoficamente plausíveis" foram as palavras de minhas críticas que se transformaram na causa de seu distanciamento de minha pessoa. Lamentei bastante, mas percebi que era um direito seu aceitá-las ou não, como meu, dizê-las ou não.

Mas alegrei-me à profusão quando recebi o convite de lançamento de seu livro, o primeiro de uma série deles, eu tinha certeza. Ou esperança, pois somente assim talvez meu amigo aprendesse que críticas são a argamassa de uma boa obra. E de uma boa personalidade.

Fiquei realmente contente e passei a divulgar entre meus outros amigos que dia tal, a tal hora, se daria o passo inicial em direção a um sonho. Bastou a menção de "inicial" e "sonho" para criar afeição nos meus amigos por esse outro que não conheciam, pois a linha comportamental do rol de conhecidos meus sempre se esticou em direção a uma ideologia profunda em relação a conquistas e vitórias. Todos confirmaram presença no lançamento a fim de dar apoio ao escritor em desabrocho.

No dia seguinte, em minha caminhada matinal e diária rumo a lugar algum, estava numa avenida pouco movimentada quando vi um cão em correria desesperada em busca do pneu de um carro. Por dez, vinte, cinqüenta metros, o animal latia e corria, latia e corria. Quando via que não era páreo para a tecnologia, parava e ficava olhando sua presa escapar horizonte adentro. Latia mais alguns minutos e depois voltava para seu ponto inicial, onde esperava que outro carro aparecesse. Em aparecendo e em passando por ele, começava novamente sua correria e suas latidas.

Fiquei observando aquilo e brincando com algumas idéias em minha cabeça. Talvez estivesse querendo entender o sentimento de divertimento do animal. Mas não consegui. Porém, parabenizei-o pelo instinto de persistência, mesmo que não o levasse a lugar algum, ao que parecia.

Foi quando outro carro apareceu e o cão reiniciou sua guerrinha particular, e eu já retomava minha caminhada para o "não sei onde", que notei algo diferente naquela pasmice. O carro estacionou após dez metros do lugar de onde estava o cão. Parei novamente e vislumbrei o quadro. O animal parecia derreter de tanta decepção. Sua bocarra permaneceu aberta no meio latido a meio gesto, bem diante do pneu parado ali, a sua frente, imóvel, inerte, presa fácil, prêmio dado e não conseguido, vitória ganha e não conquistada. Deitou-se no meio da avenida e pôs a cabeça no meio das patas, olhando fixamente para o pneu, sem entender exatamente o que poderia fazer com ele. Em seu vazio interior, não viu outro carro e morreu esmagado. Alguma coisa naquilo tudo trouxe a mim a lembrança dos Noéis Rosa, dos Cazuzas, dos Rembrants, dos Vinícius, dos grandes mestres das diversas artes que compõem a alma humana. Dos que lutam por ideais e sonhos sem se prepararem para a conquista, se algum dia chegarem a conquistar. Usam o tempo na busca desenfreada de um ponto qualquer no futuro e esquecem-se de estruturar a alma para quando lá chegar, destruindo-se no instante quase exato de abrir a porta de acesso à realidade pela qual tanto lutaram. Deixam marcas e exemplos, deixam direção para os que os seguem, deixam caminhos feitos em trilhas de perseverança. Mas somem enquanto corpos, desaparecem enquanto presença e transformam-se apenas em moldura para suas obras, esquecidos em meio à tentativa de uns e outros de não esquecê-los jamais. Dias depois de receber o convite de lançamento do livro do meu amigo, recebi a notícia de sua morte por coma alcoólico. O homem sempre se prepara bastante para lutar por seus sonhos, mas não descobriu uma maneira eficaz de mantê-los reais. Um fortíssimo abraço,"Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim". Chico Xavier. Paz, Fraternidade e Sucesso.

Serg Smigg

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