O objetivo do presente artigo é relembrar algumas contribuições de Mário Henrique Simonsen (1935-1997), economista que dispensa maiores apresentações, tido por muitos como uma das mentes brasileiras mais brilhantes do século passado. Entre as várias contribuições de Simonsen à teoria econômica, temos a pretensão de comentar brevemente apenas duas, dado o limite espacial deste artigo. Campos (1998:12-13) cita cinco contribuições de Simonsen: A Curva de Simonsen [Simonsen (1964), descrita também em Barbosa (1997)]; Os três determinantes da inflação [Simonsen (1970), Barbosa (1997)]; A necessidade de acompanhamento de políticas de rendas para o suprimento das falhas de coordenação do sistema de preço via mercado [Simonsen (1964), Simonsen (1970), Simonsen (1988), Barbosa (1997)]; A regra de endividamento prudencial; E a crítica à teoria da escola das expectativas racionais e a hipótese de imediata convergência para o equilíbrio de Nash. [Simonsen (1986), Simonsen (1988), Werlang (1998)]. Cysne (2001) cita quatro campos adicionais das contribuições de Simonsen ao desenvolvimento do conhecimento econômico acadêmico: “Condição de transversalidade na otimização dinâmica”; “vulnerabilidade a choques com moeda indexada”; “contabilidade com juros reais” e “custo de bem-estar da inflação com moeda remunerada”; comentando estas duas últimas.
Dentre as várias, optamos por comentar duas das principais contribuições de Simonsen no âmbito da teoria da inflação: a chamada curva de Simonsen (salário real versus inflação) e as três componentes da inflação. Finalizamos com algumas posições do pensamento de Simonsen em relação ao crescimento econômico e algumas referências bibliográficas.
Na figura 1, temos a chamada curva de Simonsen [descrita em Simonsen (1964)], onde a mesma apresenta a dinâmica do salário real frente ao processo inflacionário. Podemos notar que o salário real cai continuamente frente ao processo inflacionário que, por sua vez, é contínuo. Por hipótese vamos assumir que o trabalhador firmou um contrato de trabalho com o salário real no ‘pico’ (em t+1), como seu salário nominal é fixo até, por exemplo, t+2, no intervalo entre t+1 e t+2 o salário real do trabalhador cai (há perda do poder de compra devido ao processo inflacionário), passando pela média até chegar ao ‘vale’, quando o salário nominal é reajustado (em t+2) e o trabalhador retoma seu poder de compra que era vigente em t+1, ou seja, em t+2 seu salário real volta ao pico. Em linhas gerais, os salários nominais sobem descontinuamente (em t+1, t+2, t+3, etc.) de acordo com a política salarial, os preços sobem e os salários reais diminuem continuamente.
Diante de um cenário de inflação elevada e crescente em que não há sincronia nos ajustes dos preços na economia (inclusive o salário nominal), necessariamente há o problema de distorção de preços relativos. Ora um agente econômico estará no ‘pico’, outro na ‘média’ outro no ‘vale’. O ‘pico’ para todos os agentes ao mesmo tempo é um fato incompatível. A busca pela recomposição pelo ‘pico’ gera o chamado conflito distributivo em termos reais. A política salarial do PAEG (Programa de Ação Econômica do Governo), em 1964, leva em conta tal fato, sendo que o salário vigente para os doze meses seguintes era calculado de acordo com a média dos vinte e quatro meses passados e acrescido de um fator de produtividade. No mesmo molde, mas em grau diferente do PAEG, o Plano Real também contou com este elemento (políticas de renda), no momento da conversão do salário nominal para a URV (Unidade Real de Valor). Ou seja, os salários nominais de março foram convertidos para URVs pela média do poder de compra dos meses de novembro e dezembro de 1993 e janeiro e fevereiro de 1994.
A lógica da curva de Simonsen é válida também para descrever a dinâmica dos preços relativos e dos lucros das empresas dentre outras coisas. O raciocínio por trás da curva, apesar de parecer simples, é sem dúvida genial (e formalizado há mais de 40 anos) por propiciar a análise do conflito distributivo e o problema de não sincronização dos preços relativos numa economia com processo inflacionário, contando ou não com a instituição da correção monetária formal ou implícita nos contratos.
No célebre livro Inflação: Gradualismo x Tratamento de Choque [Simonsen (1970)], obra que depois viria a lhe render o título de primeiro doutor em economia pela Escola de Pós-Graduação em Economia (EPGE) da Fundação Getúlio Vargas – Rio, em 1974 (agraciamento único, neste sentido, da EPGE até os dias de hoje), no capítulo 6 temos a descrição formal da inflação. As chamadas três componentes da inflação. Em termos analíticos temos que:
Onde: r(t) é a taxa de inflação no momento t, a(t) é um choque de oferta (choque exógeno), r(t-1) é a inflação no momento imediatamente anterior, d(t) é a demanda efetiva real no momento t, d*(t-1) é a demanda efetiva no momento imediatamente anterior (igual ao produto real), n é um parâmetro que corresponde à “taxa normal de crescimento da demanda”, sendo o principal determinante deste parâmetro o ritmo de expansão da capacidade produtiva do país. Temos ainda os parâmetros b e c, que são, respectivamente, o coeficiente de realimentação e o parâmetro que reflete a sensibilidade da inflação de demanda.A primeira componente da inflação, como podemos notar, advém de um choque de oferta, aleatório por natureza, sem condições de previsão, como, por exemplo, uma má safra provocada por condições adversas da natureza (uma grande seca), uma elevação abrupta do preço do petróleo, etc.
A segunda é a componente de realimentação [que daria origem à teoria de inflação inercial, Ramalho (2003)], a qual diz que a inflação do momento é explicada, em parte, pela inflação do período anterior, sendo b o parâmetro de magnitude desta realimentação ou o quanto a inflação do período anterior (t-1) impacta sobre a inflação do presente (t). Se for igual à unidade, toda inflação do período imediatamente anterior realimenta a inflação do momento atual.
A terceira e última componente, porém não menos importante, é a de regulagem da demanda. Diz que uma parcela da inflação pode ser explicada por choques de demanda. Se a demanda em (t) for maior que demanda em (t-1) e não for contrabalanceada pelo aumento da produtividade da economia, a inflação em (t) se elevaria de acordo com o parâmetro c, ou seja, de acordo com a sensibilidade da economia aos choques nos elementos de demanda.
Apesar de Simonsen descrever quase que perfeitamente a inflação, e alertar de como deveria ser o seu processo de combate, a história econômica recente nos relata os erros e os acertos no diagnóstico da inflação brasileira. Os dois Planos recentes de estabilização da inflação mais emblemáticos foram: O Plano Cruzado (1986) e o Plano Real (1994). O Plano Cruzado partia do pressuposto de que a inflação brasileira era de caráter puramente inercial (reforçado pelo fracasso da ortodoxia em combater o processo inflacionário em períodos anteriores), ou seja, os formuladores e executores do plano desconsideraram os efeitos dos elementos da demanda sobre a inflação. Era notório que um congelamento
de preços quebraria a inércia inflacionária, porém, como vimos, não foi suficiente. Talvez o problema mais grave tenha sido a insistência no erro na maioria dos Planos de estabilização que sucederam o Plano cruzado.
Sobre o combate ao processo inflacionário, nas palavras de Simonsen:
“(..) Há duas maneiras erradas de enfrentar a inflação brasileira. A primeira é tratá-la como um simples problema monetário e fiscal, ignorando o sistema suigeneris de indexação existente no país. A segundaé classificá-la como puramente inercial, quando o déficit público, além de elevar os juros reais a taxas estratosféricas, pede mais de 200% de expansão monetária para o seu financiamento. Monetaristas e fiscalistas, de um lado, e inercialistas do outro, estão cheios de razão em seus argumentos. É preciso, apenas, que cada parte reconheça as razões da outra (...)” [Simonsen (1985:30)].
O Plano Real contemplou os dois aspectos indicados por Simonsen. Considerou-se a parte inercial da inflação (introduziu-se a chamada moeda indexada, a URV, proposta pelos economistas André Lara-Resende e Pérsio Arida na primeira metade da década de 80 para solucionar este problema) sem se descuidar da demanda agregada, com políticas fiscais e, sobretudo, monetárias no auxílio ao combate da inflação (outro elemento que contribuiu para o sucesso do Plano foi a continuidade da abertura econômica).
Em termos de crescimento econômico, no discurso de Simonsen sempre estava a necessidade de elevar o capital físico e o capital humano. O primeiro é dado pela elevação da taxa de investimento (Formação Bruta de Capital Fixo) que, por sua vez, tem de contar com a elevação da taxa de poupança da economia, sobretudo doméstica, para sua efetivação. O segundo elemento viria, na linha de Simonsen, com a elevação e melhora na educação e da saúde da população brasileira.
Ainda sobre a necessidade de elevar a poupança doméstica, nas palavras de Simonsen:
(...) “Entre 1930 e 1980 o Brasil teve políticas de desenvolvimento com um traço comum: o reforço da poupança interna por fundos fiscais ou parafiscais, destinados a financiar investimentos específicos. Assim foram as reservas técnicas da Previdência Social, enquanto existiram, os empréstimos compulsórios e os impostos vinculados. Com esses fundos constitui-se uma poupança governamental, que no início da década de 1970 chegou a representar quase 5% do PIB. O Brasil crescia muito porque poupava bastante (...)” [artigo: “Onde foi que erramos”, Revista EXAME de 17-01-1996, reproduzido em Simonsen (2002: 431-3). Sem elevação da taxa de poupança, que propiciará uma elevação da taxa de investimento, é inócuo falar em crescimento sustentado.
Abaixo, seguem algumas referências sobre a obra de Mário Henrique Simonsen (e alguns artigos que giram em torno das suas obras). Sendo, os livros Ensaios Analíticos [Simonsen (1994) – edição esgotada] e 30 anos de indexação [Simonsen (1995)] os dois últimos livros que Simonsen nos contemplou. Em Ensaios Analíticos (editado a partir da suas notas de aula num curso na EPGE), Simonsen nos concede uma pequena parcela da sua incontestável erudição, discorrendo sobre os temas mais variados, como por exemplo, teoria da relatividade, filosofia, as relações entre música e matemática, teoria dos jogos, teoria marxista, teoria keynesiana. Nas palavras de Roberto Campos [Campos (1998:13)]:“(...) O escopo econômico dos interesses de Simonsen é revelado sobretudo em seu erudito trabalho Ensaios Analíticos, que é na verdade o livro que eu gostaria de ter escrito (...)”.
Leitura obrigatória nos cursos de Economia Brasileira Contemporânea e, portanto, na formação do economista, 30 anos de indexação, apesar de ser um livro com poucas páginas (pouco mais de cento e sessenta páginas), transcreve com maestria o período de indexação no país, guardando os três capítulos finais para exposições teóricas acerca da indexação e da teoria da inflação inercial.
Por suas contribuições acadêmicas (tanto teóricas quanto na formação do pensamento econômico brasileiro), por sua contribuição no governo (Ministro da Fazenda no governo do general Geisel e Ministro do Planejamento nos primeiros meses do governo do general Figueiredo), por fundar a EPGE (uns dos centros de excelência em pós-graduação em economia do país), por suas formulações de políticas econômicas e sociais, por sua objetividade e por tornar muitas vezes simples o entendimento da teoria econômica a um público amplo, Simonsen sem dúvida está presente no rol das mentes brasileiras mais brilhantes. Para finalizar: Simonsen faz muita falta não somente à comunidade dos economistas, mas à sociedade brasileira.
Esta matéria encontra-se também disponível no Boletim Opinião, que pode ser visto acessando-se o site do Conselho: www.coreconsp.org.br
Texto: Econ. Gustavo Taouil
REFERÊNCIAS
BARBOSA, F.H. “A Contribuição de Mário Henrique Simonsen.” Revista de Econometria, vol. 17, no. 1, 1997.
CAMPOS, R. “Mário Henrique Simonsen, um Matemático Humanista.” Revista Brasileira de Economia, vol. 52 (edição especial), 1998.
CYSNE, R.P. “Mário Henrique Simonsen.” Estudos Avançados, vol. 15 (41), 2001.
RAMALHO, V. “Simonsen: Pioneiro da Visão Inercial de Inflação.” Revista Brasileira de Economia, vol. 57, no. 1, 2003.
SIMONSEN, M.H. A Experiência Inflacionária no Brasil. Rio de Janeiro: Ipes/GB, 1964.
SIMONSEN, M.H. Inflação: Gradualismo x Tratamento de Choque. Rio de Janeiro: Apec, 1970.
SIMONSEN, M. H. “Indexation: Current Theory and the Brazilian Experience.” in Inflation, Debt, and Indexation, edited by: R. DORNBUSCH & M. H. SIMONSEN. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1983.
SIMONSEN, M.H. “A Inflação Brasileira: Lições e Perspectivas.” Revista de Economia Política, vol. 5 (4), 1985.
SIMONSEN, M.H. “Price Stabilization, Income Policies and Monetary Reforms.” Revista de Econometria, vol. 6, 1986.
SIMONSEN M.H. “Rational Expectations, Game Theory and Inflationary Inertia.” in The economy as an evolving complex system, edited by: P. ANDERSON, K. ARROW & D. PINES, Santa Fe series Vol. 5, Addison-Wesley CA, 1988.
SIMONSEN, M.H. Ensaios Analíticos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1994.
SIMONSEN, M.H. 30 Anos de Indexação. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1995.
SIMONSEN, M.H. Textos Escolhidos – Mário Henrique Simonsen. (org.) C.E. SARMENTO, S. WERLANG & V. ALBERTI, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
WERLANG, S. “Simonsen, Inflação, Expectativas Racionais e os Pós-keynesiano.” Revista Brasileira de Economia, vol. 52 (edição especial), 1998.