18/01/2018
Em Terra de cego quem tem olho é rei?

Recentemente uma reportagem num dos meios de comunicação de massa mais assistido pela população brasileira, levantou a questão de verbas e propriedades adquiridas por um senhor, em especial, acusado dentre vários crimes de formação de quadrilha, apropriação indébita, etc., em detrimento de seguidores fiéis ávidos por um pouco de paz em seus corações, tão assustados com suas realidades que num ato de “fé” desesperado, literalmente queimaram seus sustentos, já tão ralos, de suas vidas materiais.

Torpes e insanas ações de violência por intolerância religiosa que tomam forma de verdadeiro terrorismo vividos e assistidos em particular no Rio de Janeiro, culminando com apedrejamento de participantes de cultos afro brasileiros, também trazem à luz varias questões acerca da necessidade de repensar o sentido de liberdade religiosa e limites do que a sociedade projeta como aceitável à emancipação de agir e pensar.

Limites no sentido amplo já que a ardente monetarização tanto da espiritualidade quanto dos segmentos da disfarçada auto ajuda mediante pago em espécie vêm ganhando força que, sem dúvidas, transforma a sociedade, mais uma vez, em soldadinhos corrompidos por pensadores esquizofrênicos com um único propósito : recrutamento de dinheiro, que na hipótese mais branda reflete estelionato, em sentido estrito e apoderamento da capacidade de discernimento dos mais suscetíveis à loucura de ramificações em nome de um Deus ou mesmo em forma de “estudo científico” com cunho de compreensão da evolução ou involução do ser humano.

A posteriori entenderam porque “estudo científico”.

Não tenho nenhuma intenção de entrar em discussões religiosas ou qualquer ramificação passível de debates de fé ou crendices, já que isto esbarraria na liberdade de ser e crer, tão importante para nosso planeta em flagrante descrença em si mesmo.

O que me chamou atenção não foi precisamente a sofreguidão que vivemos encharcados em “agua lodacenta”, pela incredulidade da humanidade, a ponto de um desprendimento tão poético e quase patético; nem tampouco a questionável rudeza fruto de “n” fatores sociais, políticos e tudo mais que alguém possa enumerar como causa deste tipo de evento.

Até porque para uma análise profunda deste tema, deveríamos submergir na história da origem das convicções religiosas, científicas, ou não, do mundo. E sinceramente este não é um assunto singelo.

O que corrompeu minha massa cefálica foi o peso do corpo que estas facções acumulam gradativamente.

Este texto não tem por finalidade pretender elucidar o que esta à sombra de conceitos religiosos ou estudos de cunho, ditos físicos do nascimento da vida humana, e sim, uma introspecção ao comportamento de aceitação massiva e passiva de uma considerável parte da população que aponta padrões estruturados e sintomáticos de loucura iminente, em dissonância a liberdade democrática (onde isto exista, ou deveria existir) catalizando verdadeira fobia desarmônica ao verdadeiro significado de ser.

A história esta repleta de atrocidades cometidas em nome de escandalosos atos de purificação de raças, crenças, guerras mascaradas por ideais que não passam de tentativas de exclusão de modos de consciência distintos do que supostamente seria o pretendido.

Vivi anos em um país de grande miscigenação, aqui abrangente não somente raças, como consequentemente a variedade de princípios íntimos. O que me favoreceu a pinceladas um panorama de respeito às diferentes vertentes de apoio às crenças.

Hoje com tristeza e vergonha acompanho noticiários que denotam um verdadeiro retrocesso no que foi um avanço para nossa sociedade: aceitação da diversidade de pensamentos.

Mudei a um país extremamente católico, fervorosamente católico e estranhamente repleto de secretos cultos, e diga-se, de valor cultural milenar e belíssimo.

A princípio causou-me curiosidade compreender os motivos de tanta dicotomia entre o praticado e o dito. Mas, enfim, isto não é novidade!

O relativamente novo, ou falsamente tido como novo é algo que vem ganhando força em algumas sociedades talvez mais recalcadas e necessitadas de romper padrões de conduta não condizentes com seus almejos reais ou mesmo a alienação crescente do congelamento do pensar livre.

Relativamente novo porque não poderia enumerar aqui com exatidão a antiguidade da relação pretendida de forma leviana. Mas seguramente este fenómeno ocorre com diversas denominações há muito na trajetória da humanidade:

“O empoderamento do conhecimento como forma de lavagem cerebral.”

E segue uma história pessoal.

Convivi com pessoas que pertenciam a um grupo de estudos liderado por um corpo de inteligência inconteste, um grande estudioso e para o qual tiro meu chapéu, ou no caso, meu véu e bato palmas. Sem cunho religioso, extremamente científico (assim falado pelo líder!)provado, ou na tentativa de, suas citações fazem qualquer um questionar a física quântica da vida.

Relutei um pouco para assistir uma palestra, justamente porque este aglomerado de multidão em torno de um pensamento dirigido por uma minúscula minoria tem gosto meio estranho à minha maneira de viver.

Por fim e com pés, mãos para trás e meu cérebro devidamente avisado que não admitiria como fato certo algo, pelo simples feito de um agrupamento aceitar como verdadeiro um juízo dirigido, fui a tal apresentação.

E para minha grande surpresa haviam umas 1000 pessoas sentadas comportadamente num auditório imenso, alguns estavam até nas escadas com seus cadernos impressos pelo Instituto e suas canetas a ponto de bala.

Ah! Os caderninhos com etiquetas lindinhas eram vendidos à parte do ingresso para o “show”. Claro todos compravam, afinal era a palestra numero “sei lá qual” que faria parte da biblioteca dos evoluídos assim que completassem todas suas idas a workshops, cursos e criativa graduação que nem imagino qual validade tenha.

Interessante que sob a denominação da “ciência da vida”, os frequentadores após uma infinidade de “estudos” graduam-se como capacitados para “terapizar” os problemáticos.

A energia era límpida, o silêncio, as propagandas , a favor do mesmo estudo!

Tudo tão perfeitamente arrumadinho.

Já estava claustrofóbica .

A palestra começou ( 2 dias inteiros ).

Minhas reticencias diminuíam à medida que percebia que muito do que escutava já havia estudado em outras ocasiões e complementavam este conhecimento. Física, química, evolução da vida!

O choque: antes de chegar a este lugar, como enunciei, coexisti com seres engajadas neste cenário novo.

Cada frase, destas de efeito, ditas com voz altiva e repetitiva, eram as mesmas que escutava deste pequeno grupo que conhecia. Olhava perplexa tentando acreditar que não era possível que eu estive diante de papagaios humanos da verdade alheia, que pudesse ter sido ludibriada por copiosas citações dignas de louvor a personalidades tão bem delineadas.

Por nós: vamos acreditar no que queremos mas quem eram aquelas pessoas encapsuladas em conceitos pragmatizados por elas mesmas com imbuída veracidade sem um nó de questionamento pessoal com as quais estive conversando?

E o pior , eram todas iguais? O grupo repetia as mesmas palavras sempre?

 

Um sentimento contraditório tomou conta de minha mente: “Sim! Havia muito sentido o conhecimento. Não! Ninguém pode viver a verdade do semelhante como própria a um nível de alienação tão grande! E, como assim, estudo científico?

Ciência pressupõe uma série de regras, análises, experimentos e o proposto ali não tinha nada de científico, se não as citações de livros de grandes autores.”

Como? Explico:

“Então, todos temos “bolhas de abandono” e devemos trabalhar isto. Coitados, miseráveis abandonados, necessitam superar! E que fazer? Assistam a palestra sobre “bolha de abandono”.

Poxa, mas se não fizermos tudo aquilo que nos propusemos, a vida nos levará novamente a passar pelas mesmas aprovações. (donut viciada). O que fazer? Assista nosso curso sobre “superando o donut gigante!”

“Mas se eu comprar um libro, meditar, correr? Ahhhh, não conseguirá. Divida sua bolha de abandono e seu donut viciado no Curso de Milagres as quintas feiras às 8pm e se liberte!”

E o que é isto? Ciência? Por favor!

Superação? Ajuda?

Não, é lavagem cerebral descarada.

O acesso a estas palestras não é tão simples já que os ingressos custam um valor muito acima do que a maioria pode pagar. Os cursos então, um verdadeiro plano de saúde - não pago - para custeá-los.

Enfim, todos devem ser apoderados e eu pobre de marre!

Está certo cada um vende o que quer, no preço que quer e compra quem quer e pode.

Nem preciso entrar em detalhes dos olhares dirigidos a estranha figura que eu representava no meio destas pessoas quando saímos no “horário do almoço”, obviamente pago por cada um (não incluso no pacote ).

O diálogo:

“Quantas palestras você já assistiu?”

“Esta é a primeira mas achei muito interessante!”

“Hummmm!”

“Já fez algum curso assim?”

“Não, mas estudei sobre estes temas em outras ocasiões.”

Uma ignorada generalizada.

“Talvez eu esteja paranoica”, pensei.

A pérola da ruiva (tingida) da mesa:

“Sabe, eu acho que deveríamos possuir um meio de comunicação onde somente pessoas que participem deste movimento tenham acesso, assim teríamos relacionamentos (amorosos) entre nós!”

Ops. Aí foi demais!

“Querida, o que faz você pensar que o fato de sentar nestas cadeiras e supor fazer parte de uma classe privilegiada de pessoas com tanto conhecimento (ironicamente, claro) torna este rebanho de ovelhas, um zeta da sociedade ralé a qual você, neste momento, qualifica como incapaz de compreender os anseios tão nobres desta instrução, que por sinal está em livros para qualquer estúpido ler?”

Colheres bateram na mesa, um par de pessoas desviou o olhar, e a pessoa com quem eu estava creio ter desejado me afogar na sopa que eu comia.

Por que desta história? Qual o elo com o início?

É com grande tristeza que constato que a mente humana encontra-se tão desorientada que qualquer galho que apareça sendo a salvação dita por homens tão medíocres como cada um de nós, são verdadeiros resgatadores!

Por que não buscamos pensar mais? Questionar mais? Por que a sociedade segue revoltada com o que ela mesma cria e não faz o mais simples: questiona, muda, transforma?

A exclusão se transforma em meio de sobrevivência quando o que mais precisamos é o oposto.

Se somos irmãos neste jornada na Terra e, quantas cada um queira acreditar, por que tímidos aglomerados de pessoas ganham robustez em exceptuar o que é diferente? Diferente lato e stricto sensu!

Sim, há pessoas com inteligência e capacidade suficientes para guiar multidões e devemos ser gratos, já que a estupidez foi bem distribuída no mundo e, sendo menos grosseira, cada um encontra-se num grau de evolução, necessidades distintos.

Mas a Terra esta caótica, por falta de pensar.

E realmente “em terra de cego quem tem olho é rei”!

Não sou contra a orientação, seja de qualquer tipo ao aprendizado. Ao contrario, acredito que devemos compartilhar descobertas, crenças, e o que puder agregar consciência à mente.

Precisamos sim de guias, em diferentes áreas de nossas vidas.

Mas sou contra o fanatismo sob qualquer denominação!

Esta experiência que conto aliada às reportagens que assisti me fizeram reflexionar sobre quanto ou até quanto é possível nos desnudar de nossa capacidade de criar sinapses mentais concebendo, comparando, criando conclusões ou indagações próprias, sem desfigurar a natureza individual de cada mente. Me fez perguntar por que uma minoria segue utilizando seu conhecimento como fonte de manipulação e continuamos aceitando isto.

O pior é que este já não é mais um tema de religiosidade e sim de lavagem cerebral devassada.

O problema não está em quanto você paga por auto superação (o que na prática não tem nada de auto, já que o curso foi o vetor que mudou a vida!), afinal o dinheiro é de cada um.

O dramático é acreditar que estas formas de alívio transformam os pupilos em avançados pensadores distintos e quase deuses perante uma multidão paupérrima destes conhecimentos.

O perigo está na formação de esquadrões disseminadores de todos que veem a vida com outros olhos.

O amedrontador é uma faísca de busca de raça pura! Puramente idiota e prepotente julgadora dos erros alheios, por eles mesmos assim classificados.

Não há um pensar correto ou erróneo. Há sim a fobia à opções, entendimentos, pensamentos distinguidos fomentando a intolerância da convivência.

A quantidade de grupos de autoajuda (aqui já pessimamente colocado) aumenta desbravando territórios. Chats de “consciência, remodelação de paradigmas, reconstrução de valores”, e assim vão as denominações criativas, proliferam como peste em todos os lados.

Qual o problema, se isto é ajuda?

Veja o precinho no final de cada bate papo, com intuito de orientar aos perdidos.

Somos agregados a várias comunidades de “desenvolvimento”.

Desenvolvimento do que? Melhor seria de alienação coletiva.

Todos escrevem e falam com tanto primor, as palavras são doces, o lema de sanaçao de si mesmo, do outro, do mundo esta envolto em letras reluzentes, verdadeiros profissionais na auto piedade e compaixão e de repente: você só tem que pagar “X”.

E aqui o exemplo de inserção de criminosos, traficantes no Rio de Janeiro como fanáticos alicerçados por um poder de comando supostamente legítimo a praticar tortura moral, física desmoralizando um estado democrático sob imposição de preceitos que deveriam remotar a Idade Média.

Ou seja, que é o que esta imbuído nas sombras desta massificação de condutas por criminosos agora redentores?

Dinheiro? Erudição? Avance? Ou apologia a ignorância? Desconhecimento da capacidade de raciocínio?

Mais uma vez, cada um vende o que quer, como quer, para quem quer, e compra quem pode, acredita e deseja.

Temos que sobreviver? Sem duvidas.

A questão não é o cunho destas práticas, religiosas, emocionais, psicológicas e sim o negócio marchetado , o preconceito (aqui entendido como conceito doloso) escondido no comercio executado em nome de um resgate intangível.

Não vendem escancaradamente a proposta. E sim, alimentam de migalhas aos famintos vagantes na terra das ilusões, desilusões, frustrações um sistema de amparo defraudado, já que para nutrir o verdadeiro escopo destas façanhas nada melhor que a inspiração de um ideal inacessível.

Por que inacessível?

Porque entregar uma pequena luz ou promessa de lucidez coletiva alimenta constantemente esta indústria financeira.

Desta maneira, os cursos nunca terminam, afinal o “saber” suficiente para o livramento da dor exterminaria a busca pelo socorro.

A perseguição não se extingue, ( para o caso da intolerância ) já que há um alguém disposto a sacrificar vidas em nome de ridículos preceitos pactuados por uma cúpula ardilosa e inescrupulosa.

Nada mais fácil do que criar uma alavanca falsa de avance pessoal somente possível através das etapas cumpridas fielmente.

Programa-se uma dependência de que no próximo passo estará o necessário para seguir avançando na arte de viver.

Esta progressão de um exército da salvação não conterá nunca sua sede de mais seguidores numa avalanche sem fim, já que há resistência!

Quando não, a sensação impenetrável ao ideal para um modus vivendi pacífico é sarcasticamente enrolado em palavras de culpa, gerando uma constante sujeição derivada da incapacidade de sobrepujamento, que, em verdade, esta macetada em paradigmas intangíveis.

A sensação de mediocridade emocional fervilha o caldeirão do comercio em questão e assim manadas são alimentadas, não de cura e sim de anelo por superação. O que na prática não acontecerá a menos que exista uma libertação do pensar.

O julgado politicamente incorreto aqui, não é a cara dada a este tipo de aprendizagem (se é que podemos chama-lo assim),e sim, um quase charlatanismo que transforma a debilidade individual em material de troca de moeda. É a mordaça aos que têm sua fé e estão sendo aprisionados por cultuarem suas verdades. É o exclusivismo e segregação criada por uma parcela de indivíduos que assentem serem superiores por dado (pago) conhecimento.

Então, tirem as máscaras e vendam como negociadores de um produto.

Um produto que não existe. Se realmente alguém soubesse a fórmula do bem viver ou soubesse o suficiente para retirar as mazelas da sociedade, isto já teria acontecido e estaríamos apenas filosofando nas nuvens confortáveis com Platão!

É crime constitucionalmente previsto o preconceito, ou melhor, a intolerância religiosa e adjacentes, bem como o cerceamento da liberdade de pensamento.

No entanto, é crime inafiançável a lavagem cerebral e formação de cartéis diante dos homens, perante a vida e contra a humanidade.

DANIELE DE CÁSSIA ROTUNDO

 

 



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