Parceria entre USP, Butantã e o hemocentro de Ribeirão Preto com células T modificadas está em fase de testes clínicos. Apenas farmacêuticas americanas e europeias produzem o medicamento. A primeira paciente a receber o tratamento está sem desenvolver a doença há mais de dez anos.
Terapia promete revolucionar o tratamento contra o câncer de sangue
A ciência celebra mais uma conquista no Brasil: uma tecnologia 100% nacional, que promete revolucionar o tratamento contra o câncer de sangue no país. Um programa lançado esta semana em São Paulo espera atender 300 pacientes por ano.
O estudante de medicina Lucas Visconti enfrentou a leucemia por cinco anos. Quimioterapia e até transplante de medula. Só que a doença voltava.
Mas a esperança veio quando ele foi aceito em uma pesquisa com o tratamento mais moderno para câncer de sangue, a terapia com células do próprio sistema imunológico, manipuladas e reforçadas para combater a doença.
Foi uma vitória. Depois de 26 dias internado, Lucas saiu com a doença dominada.
“Extremamente feliz, extremamente grato de poder ter recebido esse tratamento tão inovador e tão eficaz, né?", diz ele, que joga vôlei.
Esse tipo de terapia, feita com linfócitos T modificados, já foi aprovada há cinco anos nos EUA. Depois, na Europa, China, Austrália e Canadá.
A americana Emily fez 17 anos em maio. Aos 7 anos, ela foi a primeira criança no mundo a receber esse tratamento. Dez anos se passaram, e ela e o pai não se cansam de contar a história.
“Foi o renascimento da minha filha'', diz Tom, pai de Emily.
O Dr. Stephen Grupp achou que a menina não fosse resistir. Eram os primeiros testes, e os médicos ainda não sabiam controlar as reações. Ao fim de três semanas, deu certo. Emily está curada. A terapia, agora, é muito mais segura e já é usada mundo afora. O pai de Emily criou uma fundação para lutar pelo acesso de todos ao tratamento. Nos EUA, a terapia é coberta pelos seguros de saúde.
Em São Paulo, depois de quase 20 anos de pesquisas feitas com dinheiro público, cientistas brasileiros já são capazes de produzir o tratamento a partir das células T modificadas. E por um preço muito inferior do que o tratamento feito no exterior.
O hemocentro de Ribeirão Preto e as faculdades de medicina da USP se uniram ao Instituto Butantã para realizar os tratamentos no país. Antes, é preciso passar pela fase de testes clínicos, que depende de aprovação da Anvisa.
Diretor do Butantan, o hematologista Dimas Covas diz que o processo de pesquisa será totalmente automatizado, feito por máquinas importadas da Alemanha. O custo por tratamento é de cerca de R$ 100 mil por paciente. Ainda é caro, mas representa apenas 2% de um tratamento importado.
“Nos EUA, a produção da célula fica em torno de US$ 400 mil, cerca de R$ 2 milhões. Criamos uma tecnologia própria que nos vai dar independência e, daqui a pouco, vamos colocar isso à disposição do público, no SUS. Esperamos que isso ocorra no decorrer do próximo ano”, afirma Dimas Covas.
O hospital Albert Einstein, em SP, também já está na fase final do processo de autorização da Anvisa para testes clínicos.
Por enquanto, as células T modificadas só foram aprovadas para algumas formas muito avançadas de linfomas, leucemias agudas e mieloma múltiplo. A nova terapia, aplicada apenas em pacientes muito graves, consegue taxas de remissão completa entre 80 e 90%. E os médicos só falam em cura depois de cinco anos sem a doença.
Como funciona o tratamento
As células T, do sistema de defesa do corpo, são retiradas do paciente. Em um laboratório, elas recebem um pedaço de DNA com nova informação genética. Essa modificação faz a célula produzir uma molécula chamada pelos cientistas de Receptor de Antígeno Quimérico. Ou CAR, na sigla em inglês.
A célula T modificada passa a reconhecer as células cancerígenas. É como se as defesas do paciente recebessem uma mira laser, mais eficiente. Quando essa célula é devolvida no corpo da pessoa, ela se multiplica e enfrenta o câncer com muito mais força e eficiência. É por isso que, nos EUA, os cientistas chamam esse processo de “medicamento vivo”.
A reação é muito forte, e o tratamento tem de ser feito em hospitais especializados no controle da inflamação provocada por essa luta reforçada contra o câncer.
A professora Rosângela encarou o tratamento e participou da fase de testes do medicamento importado dos EUA, na pesquisa do médico Marcos Salvino.
“Eu sentia fraqueza e o controle do corpo eu não tinha. E febre, tive febre todos os dias... Meu organismo começou a reagir”, diz ela, que em 20 dias já havia superado o tratamento e a doença.
“A revolução é no modelo de tratamento, para ir largando aquela coisa de quimioterapia que a gente conhece: cabelo caindo, enjoo. É a célula do corpo atacando. Mas a outra revolução são os resultados, né? As taxas de eficácia dessas terapias são muito altas e bem acima do que a gente tinha até então disponível”, afirma o médico.
Por enquanto sem opção nacional, o medicamento importado é caro. Já existem ações na Justiça pedindo para o SUS cobrir o tratamento. Até agora, sem nenhuma decisão. Os convênios médicos, que costumam cobrir outros procedimentos oncológicos, ainda discutem se vão cobrir a terapia.