Coletânea
Uso prolongado de videogames pode afetar vida profissional e saúde mental. Erika Gouveia explicou algumas consequências já conhecidas do vício em games, mas também ressaltou possíveis bons usos para essas novas tecnologias
O número de pessoas que jogam videogames cresce ano a ano e o mercado de games está em constante expansão. Dados da Pesquisa Game Brasil (PGB) mostram que dois terços dos brasileiros jogam games eletrônicos, na sua maioria, jovens de 25 a 34 anos. O problema é que estudos recentes apontam problemas de saúde, principalmente mentais, em usuários que jogam com frequência.
O vício em games vem se tornando cada vez mais frequente e, em 2018, a Organização Mundial da Saúde passou a reconhecê-lo como um distúrbio mental. Erika Gouveia, doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, explicou alguns dos efeitos negativos que a utilização excessiva dos videogames pode causar para a saúde das pessoas.
Ainda que os games tenham diversos efeitos negativos para os usuários que jogam com frequência, Erika explicou um lado desconhecido dos videogames: a utilização em tratamentos médicos, ressaltando que a tecnologia veio para nos ajudar, e usar essas tecnologias de formas criativas pode ser extremamente benéfico.
Fonte: Jornal.usp.br
O que é Vício em games?
O vício em games é um tipo de vício comportamental em que a pessoa deixa de fazer suas atividades diárias para ficar jogando, o que compromete atividades básicas do cotidiano, como higiene pessoal, alimentação, trabalho e/ou estudos, vida social e etc. Além disso, a pessoa chega ao ponto em que continua ou aumenta a frequência do jogar apesar da ocorrência de consequências negativas. Esses descontrole do ato de jogar deve ser recorrente por mais de 12 meses.
Pessoas que conseguem se focar nas outras atividades e se desligar do jogo não entram nesta categoria.
Presença no CID-11
Em janeiro de 2018 foi anunciado que o transtorno de vício em games seria incorporado como doença pelo 11º Catálogo Internacional de Doenças (CID-11).
Apesar de ser um tipo de vício que já é tratado por instituições médicas no Brasil e no mundo, com esta resolução será possível estudar melhor o problema, entendendo epidemiologia, resposta aos tratamentos, entre outros.
Além disso, isso tornará mais simples também mensurar a prevalência e populações mais afetadas pelo quadro.
Mas isso pode trazer pontos negativos como estigmatização dos jogadores e também os diagnósticos falso positivos. Isso acaba desvirtuando o ato de jogar, trazendo um caráter negativo para a prática.
Benefícios de jogar vídeo games
Os jogos virtuais e games podem trazer uma série de benefícios, principalmente para crianças, trazendo melhoras para:
Raciocínio lógico
Tolerância a frustrações
Agilidade
Coordenação
Atenção.
Além disso, os jogos sociais podem trazer maior relação com pessoas, vivência de novas experiências e abertura para criação de novas relações.
Causas
Não existe uma causa conhecida ou específica para o vício em games: e sim uma somatórias de fatores que aumentam as chances da pessoa desenvolver o distúrbio.Ou seja, não basta que a pessoa se exponha muito ao game, pois muitas pessoas jogam todos os dias e não apresentam o quadro.
Veja abaixo os principais fatores de risco para o vício em games:
Fatores de risco
Os fatores mais ligados ao risco de ter vício em games são:
Fatores biológicos
Algumas pessoas possuem estruturas neuronais e/ou biológicas que fazem com que a pessoa:
Tenha dificuldades para deixar de jogar ou interromper o jogo
Sofrer muito quando não está jogando.Tenha uma necessidade cada vez maior de jogar quantidade maiores de tempo ou por mais recompensas.
Normalmente essas particularidades biológicas estão ligadas ao mecanismo de recompensa do cérebro, e funcionam de forma semelhante ao vício por substâncias, como o alcoolismo, tabagismo ou vício por outras drogas. Acredita-se que isso pode estar relacionado a uma predisposição genética.
Isso ocorre porque o ato de jogar libera um neurotransmissor chamado dopamina, responsável pelo prazer imediato. Portanto, o jogo é um objeto que, de alguma forma e em alguns casos, pode ser comparado a uma droga.
Além disso, crianças e adolescentes têm um risco biológico maior, já que é nessa fase que os seus mecanismos neurológicos de recompensa estão sendo formados, o que pode aumentar a dificuldade em controlar ou recusar estímulos prazerosos como o jogo.
Fatores psicológicos
Além da predisposição neuronal, algumas características psicológicas podem ajudar no vício de games, como:
Baixa autoestima
Dificuldades de autocontrole
Impulsividade
Déficits em habilidades sociais como de comunicação e manejo de sentimentos desagradáveis
Timidez excessiva
Transtornos mentais como depressão e ansiedade.
Outro ponto importante aqui é observar se as crianças não são - pela omissão ou pela dificuldade de impor limites dos pais - incentivadas a se tornarem competitivas em tudo. Claro que ensinar a competição é importante para as crianças, mas há um limite também para a vida competitiva, seja no ambiente familiar, na escola, com os amigos, onde quer que seja.
Fatores sociais
Essas características acima, quando somadas a alguns fatores sociais, podem agravar a chance de vício, como:
Pressões na escola ou no trabalho
Bullying
Isolamento social fora do mundo virtual
Ausência de lazeres e passatempos saudáveis e recompensadores
Falta de limites bem estabelecidos quanto ao uso do game
Compreensão dos games como único local de aceitação social
Sentimento de pertencimento à uma equipe dentro dos jogos.
Fatores dos games em si.
Vale lembrar que o ambiente virtual se torna muito convidativo, pois tem características como um espaço de liberdade, em que se pode realizar desejos que nem sempre são possíveis na vida real e criar personagens com características desejadas. Além disso, há a possibilidade do anonimato, que gera uma sensação de segurança e que a pessoa não seja julgada diretamente.
Por tudo isso, é muito comum que o jovem tente viver no mundo virtual aquilo que ele não consegue no mundo real. A internet e os jogos, neste caso, funcionam como uma fuga da realidade em busca de segurança, prazer e estabelecimento de laços.
Outro ponto é os jogos serem altamente recompensadores. Ao atingir objetivos, a pessoa recebe reforço positivo, o que pode ajudar a mantê-la jogando.
Sintomas
Sintomas de Vício em games
O vício em games, como já explicado, é caracterizado pela priorização do jogo em detrimento a outras funções básicas do cotidiano, como higiene pessoal, alimentação, trabalho e/ou estudos, vida social e etc.
Dando exemplos mais palpáveis, isso ocorre quando a pessoa:
Deixa de comer para jogar ou realiza todas as refeições em frente ao computador/televisão.
Evita estudar ou não termina tarefas do trabalho
Começa a faltar na escola ou no trabalho para não deixar o jogo
Não sai com amigos ou se relaciona com seus familiares
Deixa de tomar banho e escovar os dentes
Compromete seu horário de sono para jogar mais e mais.
É comum que a pessoa inclusive tenha o desejo de se envolver nessas outras questões do dia a dia, mas não consegue. Mesmo sabendo das consequências negativas, ela não consegue largar o jogo.
Outros sintomas comuns são os sintomas inespecíficos do estresse, como:
Ansiedade
Irritabilidade
Alteração do sono (ou completa mudança do "fuso horário")
Certa tristeza, inação ou apatia.
Além disso, é comum que a pessoa manifeste sintomas de abstinência ao ser afastada do jogo ou da possibilidade de jogar, como:
Agressividade
Irritabilidade
Ansiedade.
Por fim, o tempo passado jogando é um fator muito importante, já que pessoas viciadas começam a desenvolver um recurso chamado tolerância, em que precisam de mais tempo expostas ao jogo para ter o mesmo prazer de antes.
Buscando ajuda médica
Como diferenciar uma pessoa viciada em games de alguém que só gosta bastante?
É importante ressaltar que apenas uma parcela mínima das pessoas que jogam este tipo de games apresentará o distúrbio, apesar de não sabermos ao certo ainda qual é este percentual.
O principal sintoma de alerta é a pessoa deixar de realizar atividades básicas como comer, tomar água, tomar banho e dormir em decorrência do game. Se o ato de jogar está afetando qualquer área importante da vida do indivíduo, como sua saúde física, mental ou social, neste deve buscar uma avaliação.
Existem também as pessoas que trabalham profissionalmente jogando (são os jogadores de eSports). Nesse caso, existirão épocas em que ela estará mais focada e será mais exigida para jogar, mas isso faz parte da profissão dela, e quando este período passa, ela volta a focar nas outras coisas.
Como a família e os amigos podem ajudar quem está com vício em games?
Para pais de crianças e adolescentes, é importante manter o diálogo aberto e perceber mudanças de atitude que perdurem por muito tempo. Parar de sair com os amigos e ter atividades sociais, além de ter comportamentos como agressividade ou ansiedade ao se desligar do jogo. Mas é importante perceber se não há outra questão de isolamento e o jogo não é um escape.
Normalmente é a família quem toma a iniciativa de buscar ajuda para a pessoa com vício em games, seja criança, adolescente ou adulto. Nesses casos é muito importante intervir e conversar.
Nessa conversa é importante tentar ouvir a pessoa e tentar entender o que se passa com ela, se colocando como um apoio, sem julgar. E então sugerir que ela busque ajuda para que ela consiga voltar a fazer o que ela quer, mas não se senta capaz devido ao jogo.
Diagnóstico e Exames
Diagnóstico de Vício em games
O diagnóstico do vício de games é feito por um especialista em psiquiatria, uma vez que outros possíveis transtornos mentais ou sofrimentos enfrentados pelo indivíduo devem ser levados em consideração, e este profissional fará uma profunda avaliação antes de definir o diagnóstico e melhor conduta.
Na consulta, o paciente conversará com o especialista, contando sobre sua relação com os jogos, como ele se sente quando deixa de jogar, entre outros pontos.
Os familiares também são entrevistados, para entender quais prejuízos os jogos estão trazendo às relações do indivíduo.
A avaliação neuropsicológica e psicológica e a constatação do prejuízo social em razão do abuso ou dependência de games também fazem parte do diagnóstico.
Não existem exames clínicos que possam diagnosticar esse vício, apenas a conversa com o médico.
Tratamento e Cuidados
Tratamento de Vício em games
Ainda não foram realizados estudos suficientes para indicar um tratamento específico e eficaz para o distúrbio de games. Hoje o mais comum é uma adaptação do tratamento para transtorno por uso de substâncias ou para transtornos de impulso.
Normalmente o foco principal do tratamento é a psicoterapia. Pode-se adotar o uso de medicamentos, principalmente em casos de presença de outras doenças psiquiátricas, que também precisam ser tratadas.
Psicoterapia
Existem diversas formas de psicoterapia, mas a mais usada nesses casos é a terapia cognitivo-comportamental (TCC). Ela ajuda pois o paciente normalmente precisa avaliar e desenvolver habilidades sociais fora do ambiente virtual, como de comunicação, de resolução de problemas, de manejo de sentimentos. O indicado é que se faça pelo menos seis meses dessa terapia, e caso não haja uma evolução satisfatória, a pessoa deve ser reencaminhada para o psiquiatra.
A reabilitação neuropsicológica também vem demonstrando bons resultados, ao partir da identificação das funções cognitivas alteradas, para o planejamento do tratamento, como a de controle de impulsos, dificuldades de planejamento e de tomada de decisões, e da consciência interoceptiva alterada pela fissura de jogar.
Convivendo (prognóstico)
Vício em games tem cura?
Ainda não há estudos suficientes para confirmar as eficácias dos tratamentos para o distúrbio de games e este é um dos motivos, inclusive, pelo qual o CID 11 está colocando este como um distúrbio já reconhecido. A partir destas inclusões será mais fácil identificar os casos e medir a eficácia de tratamentos.
No entanto, o que os especialistas entrevistados dizem de sua experiência é que o tratamento tem respostas mais rápidas com crianças e adolescentes do que adultos, no entanto, todos podem apresentar recuperação.
Complicações possíveis
O não tratamento do vício em games pode levar a diversos tipos de problemas:
Complicações sociais
Afastamento dos amigos da vida real
Preferência pela vida virtual
Piora do rendimento escolar
Perda do ano escolar
Perda do trabalho
Brigas em família
Perdas de relacionamentos.
Complicações psicológicas
Prejuízos cognitivos
Prejuízos na regulação das emoções
Surgimento de transtornos associados ao vício, como transtorno de ansiedade, depressão, etc.
Complicações físicas
O longo tempo diante de uma tela pode levar a:
Sedentarismo
Obesidade
Dores no pescoço e coluna
Lesões nas mãos e braços por esforços repetitivos
Má-nutrição.
Convivendo/ Prognóstico
Durante o tratamento de vício em games, o contato com os jogos deve ser proibido, para que não haja uma recaída.
Quanto ao aspecto mental, é importante buscar formas de organizar a rotina com responsabilidades, descanso, lazeres e passatempos alternativos, ter metas e objetivos, promover outras formas de autocuidado e de desenvolvimento pessoal, como através da meditação.
Também é importante estar presencialmente com pessoas que contribuem para sua vida, afinal além de ser prazeroso, todos precisamos de uma rede de apoio para lidar com as dificuldades da vida.
De maneira geral, como uma pessoa com vício em games avançado passou muito tempo jogando e pouco cuidado de si mesma, é importante que o indivíduo se cuide como um todo, por exemplo evitando passar muitas horas sentado, sem se alimentar ou se alimentando sem qualidade. Deve ter momentos de descanso, sono adequado, se hidratar, fazer atividades físicas.
Isso torna jogar vídeo games perigoso?
Jogar vídeo games só é perigoso para quem tem uma predisposição ao vício. Mas é o mesmo que dizer que jogar cartas é perigoso ou não: pessoas predispostas ao vício em jogos de azar têm risco ao jogar baralho, mas ninguém deixa de jogar cartas com esse medo.
Prevenção
Ainda não é consenso entre os especialistas se o vício em games pode ser prevenido. No entanto, acredita-se que a redução à exposição dos jogos é muito importante para reduzir os riscos.
Isso não significa impedir crianças e adolescentes de jogarem, mas sim ter regras mais definidas de quando e o quanto jogar, principalmente no caso de crianças.
Para qualquer idade, o ideal é que a cada 45 minutos jogando, sejam tirados 15 de descanso. E o ideal é não ficar mais do que três horas ao dia.
No caso das crianças em específico, é sempre interessante que os pais estejam atentos ao construir uma tabela de atividades bem equilibrada para seus filhos, sobretudo na época de férias, intercalando os jogos com outras atividades offline, como esportes, momentos com os amigos, e etc.
No caso de adultos, definir um tempo para dar atenção a outras áreas da vida (como estudos, ver amigos, trabalhar e etc) costuma ser mais efetivo, ai decidindo o que fica como tempo livre e quanto tempo dedicar ai aos jogos.
Referências
Psiquiatra Hewdy Lobo, especialista em Psiquiatria Forense, terapeuta comportamental especializado no tratamento da Dependência Química. Médico do ProMulher, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP e diretor do Vida Mental Serviços Médicos.
Psiquiatra Leonardo Maranhão, especializado em Dependência Química pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Psicóloga Ana Carolina Schmidt de Oliveira, especialista em dependência química pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e doutoranda do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica na mesma instituição.
Psicanalista Mônica Mussolino, especialista da Clínica Médica Integrada de São Paulo (CLIMISP) e doutoranda do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Psiquiatra Mario Louzã, doutor em Medicina pela Universidade de Würzburg, Alemanha.
Psicólogo Rafael Pereira (CRP-SC 16202), com atuação e pesquisa em esporte eletrônico.
https://www.minhavida.com.br/saude/temas/vicio-em-games