O Tamiflu é um remédio ruim. Tem eficácia pequena, e o beneficio aos pacientes é discreto."
A frase acima é do infectologista Esper Kallás, professor da Faculdade de Medicina da USP. Foi publicada em uma entrevista que fiz com ele em 2012, quando houve um aumento de casos da gripe A e uma corrida em busca do medicamento Tamiflu.
Quase dois anos depois, o mundo foi surpreendido na semana passada com o resultado de uma revisão de estudos da Cochrane (rede de cientistas independentes que investigam a efetividade de medicamentos) apontando que o Tamiflu não é mais eficiente do que o analgésico paracetamol.
A diferença está no preço. Governos de vários países, inclusive o do Brasil, gastaram bilhões de dólares com um medicamento que, segundo a Cochrane, não evita a disseminação da gripe e nem reduz as complicações perigosas da doença, como a pneumonia (como foi alardeado). Apenas diminui a persistência dos sintomas de gripe de sete dias para 6,3 dias em adultos, e para 5,8 dias em crianças.
Esper Kallás não é um profeta. A desconfiança em relação à real eficácia do Tamiflu é antiga. Já em 2009 a revista britânica "British Medical Journal" (BMJ) pediu à Roche, fabricante do remédio, a liberação de todas as informações referentes à droga, alegando que não havia evidência de que ela pudesse interromper a atuação do vírus influenza, causador da gripe, ou reduzir as complicações.
À época, o Tamiflu estava sendo estocado por dezenas de países para o caso de uma grande disseminação do vírus, uma pandemia de gripe H1N1. Os pesquisadores disseram que apesar da promessa pública da liberação de relatórios internos da empresa para cada teste do Tamiflu, a Roche não cumpriu o acordo. A farmacêutica garante que respeitou todas as exigências legais na publicação dos dados.
Um dos pesquisadores da BMJ Peter Gotzsche escreveu, em 2012, que os governantes deveriam tomar medidas legais contra a Roche para recuperar o dinheiro "desnecessariamente" investido no estoque do Tamiflu.
Pelo andar da carruagem, o apelo de Peter não foi ouvido. Em 2011, a droga foi incluída pela OMS (Organização Mundial da Saúde) na lista de "medicamentos essenciais" —utilizada para sugerir e incentivar governos a comprar determinados medicamentos.
CONTESTAÇÃO
Na Grã-Bretanha, o governo britânico gastou mais de R$ 2 bilhões na compra do medicamento. No Brasil, o Ministério da Saúde foram gastos R$ 400 milhões, remédio suficiente para 14,5 milhões de pessoas.
A Roche discorda das conclusões da análise da Cochrane. Afirma que foram usadas estatísticas "erradas" que acabaram "subestimando sistematicamente os benefícios" do remédio e métodos "pouco ortodoxos para analisar os efeitos colaterais".
O Ministério da Saúde brasileiro afirma que irá avaliar o estudo da Cochrane e outros que possam ser desenvolvidos sobre a eficácia do Tamiflu. A Organização Mundial de Saúde diz agora que "aprova uma nova e rigorosa análise dos dados disponíveis". A pergunta que não quer se calar: por que não fez isso antes de sair incentivando que os governos estocassem o remédio?
A questão central é que as companhias farmacêuticas não publicam todos os dados de suas pesquisas, especialmente os negativos. Estima-se que apenas a metade dos estudos realizados sejam publicados. O relatório do Cochrane só foi possível após um grande esforço para conseguir a liberação de dados que não tinham sido divulgados a respeito da eficácia e dos efeitos colaterais do Tamiflu.
Exigir das farmacêuticas a publicação de todos os resultados dos ensaios clínicos (positivos e negativos) deveria ser uma bandeira da OMS e de outras organizações de saúde. Isso diz respeito a todos nós.
Os governos dependem da integridade dos estudos clínicos para decidir pela aprovação e incorporação de uma nova droga no sistema de saúde. Nós, pacientes, queremos saber se o remédio que estamos tomando vai nos trazer mais benefícios do que riscos. E ter a certeza de que o nosso suado dinheirinho não irá simplesmente escorrer pelo ralo.
Cláudia Collucci é repórter especial da Folha, especializada na área da saúde. Mestre em história da ciência pela PUC-SP e pós graduanda em gestão de saúde pela FGV-SP, foi bolsista da University of Michigan (2010) e da Georgetown University (2011), onde pesquisou sobre conflitos de interesse e o impacto das novas tecnologias em saúde. É autora dos livros 'Quero ser mãe' e 'Por que a gravidez não vem?" e coautora de 'Experimentos e Experimentações'. Escreve às terças.