Anna Paula Buchalla, de Chicago
A primeira vez em que se falou em "guerra contra o câncer" foi em 1934, em um artigo da revista médica British Medical Journal. Passados 73 anos, a guerra parece não ter fim. Seria o câncer um inimigo invencível? Mesmo os mais pessimistas reconhecem que, nesse combate com múltiplas frentes, vitórias significativas foram obtidas. Mas nenhuma delas se deveu a "balas de prata" milagrosas. O caminho do triunfo, aqui, tem de ser pavimentado com paciência e muita, muita química despejada sobre o tumor. Essa era a certeza que dominava os 30.000 médicos presentes ao encontro anual da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, realizado recentemente em Chicago, nos Estados Unidos. Em relação a dez anos atrás, a medicina avançou sobremaneira na compreensão dos mecanismos envolvidos no desenvolvimento e no comportamento das células cancerosas. Agora é possível traçar o perfil genético de diversos tumores, como os de mama e de pulmão. Essas informações, aliadas à análise genética do próprio paciente, levaram à criação de remédios bastante específicos. Tão específicos que se fala até na criação de tratamentos individualizados – a atual meta na guerra contra o câncer. Ou seja, identificar que remédio funciona melhor para um determinado grupo de pacientes com características semelhantes. Algumas dessas armas estão disponíveis. São os remédios que formam as terapias-alvo – as quais costumam ser associadas aos quimioterápicos tradicionais. Esses medicamentos, também conhecidos como biológicos, agem de forma inteligente, impedindo a proliferação das células tumorais sem afetar as células saudáveis. Seus representantes mais difundidos são: Erbitux (cabeça e pescoço), MabThera (linfoma), Herceptin (mama), Nexavar (rim), Glivec (leucemia), Sutent (rim) e Avastin (intestino).
Não se fala mais com entusiasmo que a chave para ganhar a guerra contra o câncer estaria na terapia gênica (que se propõe alterar o DNA do tumor, para levá-lo à autodestruição) e em vacinas. A ênfase está mesmo nas terapias-alvo. "Está-se reescrevendo a história da oncologia", diz Bernardo Garicochea, diretor do serviço de oncologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O primeiro capítulo não chegou ao fim. Os remédios que existem não tratam todos os cânceres. São indicados, sobretudo, para os pacientes com tumores de pulmão, mama, rim, fígado e linfoma. "Entramos em uma nova era da medicina personalizada, em que múltiplas estratégias terapêuticas estão sendo combinadas", diz Antonio Carlos Buzaid, diretor-geral de oncologia do Hospital Sírio-Libanês. Os primeiros representantes das terapias-alvo foram o MabThera e o Herceptin, lançados no fim da década de 90. Desde então, foram criados cerca de outros trinta. "O objetivo final é associar apenas medicamentos biológicos, eliminando a quimioterapia do rol de tratamentos contra o câncer", afirma David Cameron, professor de oncologia da Universidade de Leeds, na Inglaterra.
A grande dificuldade no embate contra um inimigo tão poderoso (hoje o câncer é a segunda causa de morte por doença no mundo) é o fato de que um mesmo tipo de tumor difere de uma pessoa para outra, e mesmo as células de um único câncer podem ser diferentes entre si. Além disso, duas pessoas com o mesmo tipo de câncer podem responder de formas diversas ao tratamento. Por último, o câncer é extremamente mutável. Freqüentemente um paciente deixa de responder a uma terapia porque o tumor se tornou resistente à medicação. "Dar o mesmo remédio ou a mesma combinação de remédios a 500 pessoas é apostar no fracasso", diz o oncologista David Reisman, da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.
No encontro de Chicago, não faltaram balanços que reiteram a necessidade de detecção precoce da doença. A expectativa é que, num futuro breve, os exames não apenas façam o diagnóstico como também indiquem a que tratamento o paciente responderá melhor. Os laboratórios farmacêuticos investem pesado, ainda, nos biomarcadores, substâncias medidas no sangue que indicam a presença de um tumor. Diagnósticos também passaram a ser feitos por meio da utilização de "microarrays" ou "biochips" – chips que fazem a leitura dos genes que compõem uma célula, inclusive identificando os defeituosos que levam à formação do tumor. Esse é mais um passo em direção ao tratamento individualizado. "Não há dúvida de que as terapias-alvo são a principal corrente da oncologia moderna", diz o médico americano Roy S. Herbst, professor de biologia do câncer do MD Anderson, um dos mais renomados centros mundiais de estudos do câncer.
PULMÃO
SOBREVIDA MAIOR
Nos anos 80, quando um paciente recebia o diagnóstico de câncer avançado de pulmão, ele vivia, em média, de dois a quatro meses. Hoje, graças à combinação de terapias-alvo e quimioterapia, a medicina rompeu a barreira da sobrevida de um ano. Alguns estudos mostram que, de acordo com o perfil molecular do tumor, é possível que o doente chegue a viver mais de dois anos – e usando apenas um medicamento, como Avastin, Erbitux ou Tarceva. Parece pouco, mas não quando se trata de um tumor avançado e para o qual não havia tratamento efetivo. "Além de uma sobrevida maior, garante-se mais qualidade de vida", diz o pesquisador Kapil Dhingra, vice-presidente da divisão de oncologia do laboratório suíço Roche. Essa é uma revolução no tratamento do câncer de pulmão. Com a análise do perfil dos pacientes, os médicos já conseguem identificar quem se beneficia de uma ou outra terapia. Pesquisadores da Universidade Duke, nos Estados Unidos, mapearam os processos moleculares responsáveis por 80% de todos os casos da doença. Isso representa um grande passo na formulação de terapias mais específicas. "Além disso, o mapeamento abre caminho para determinar quem está mais arriscado a sofrer recorrência", diz o médico Anil Potti, autor do estudo.
MAMA
MENOS RADIAÇÃO
Como o câncer de mama é um dos tumores mais estudados, foi em relação a ele que a terapia individualizada mais se desenvolveu até agora. Uma das maiores novidades no tratamento é a descoberta de que não é necessária muita radiação para controlar os casos iniciais da doença – e menos radiação significa menos efeitos colaterais. Outra boa nova é o medicamento oral Tykerb, do laboratório GlaxoSmithKline, em fase de aprovação no Brasil. Ele é indicado para as pacientes que não respondem bem ao tratamento com Herceptin. Pode-se ainda usar, antes da cirurgia, o Herceptin combinado com quimioterapia para mulheres com câncer avançado. Os dados mostram que esse tratamento consegue erradicar completamente o tumor em 43% das pacientes, praticamente o dobro de sucesso da quimioterapia isolada. Em estudos com um novo medicamento, o pertuzumabe, uma em cada cinco pacientes em estágio adiantado da doença apresentou estabilização por seis meses ou mais. "Progredimos muito na detecção e no tratamento de cânceres femininos", diz Julie Gralow, oncologista da Universidade de Washington. Na semana passada, os médicos reconheceram pela primeira vez que o câncer de ovário, até então tido como silencioso no seu início, pode provocar sintomas como dor na região pélvica, falta de apetite e urgência para urinar.
INTESTINO
ARSENAL MAIOR
Há uma década existia apenas um quimioterápico para tratar o câncer de intestino. E cabia a esse mesmo remédio dar conta das três condutas de combate ao tumor: tentar a cura, reduzir o câncer para que ele pudesse ser removido cirurgicamente ou focar no aumento da sobrevida do paciente por meio de quantidades menores e, portanto, menos tóxicas. Hoje, o arsenal contra o tumor de intestino já dispõe de onze substâncias – três delas são terapias-alvo. "Os pacientes são diferentes uns dos outros, os tumores são diferentes entre si e os objetivos, dependendo da situação clínica de cada paciente, são diferentes", disse o oncologista Paulo Hoff, do Hospital Sírio-Libanês, em uma apresentação para 8.000 médicos no congresso de Chicago. "Já estamos conseguindo individualizar o tratamento", afirmou. Com uma opção maior de remédios e as possíveis combinações entre eles, e conhecendo melhor a biologia molecular dos subtipos de um mesmo câncer, o oncologista determina a conduta com mais precisão. Hoje já se sabe, por exemplo, que os portadores de uma mutação na molécula KRAS não respondem bem à terapia-alvo Erbitux. O câncer de intestino é um dos tipos de tumor de maior incidência. Ocupa o quarto lugar no ranking mundial dos tumores mais comuns.
FÍGADO E RIM
AGORA HÁ TRATAMENTO
A medicina dispõe de duas novas frentes de ataque a esses dois tumores em estágio avançado. Uma terapia-alvo originalmente desenhada para atuar contra o câncer de rim, o Nexavar tornou-se o primeiro remédio a ajudar pacientes com tumores avançados de fígado a viver mais. Esse tipo de câncer é um dos mais comuns e letais. Por ser silenciosa, a doença é detectada quando já tomou boa parte do fígado, tornando impossível a remoção cirúrgica do tumor. Cerca de 40% dos casos de câncer de fígado são diagnosticados em estágio adiantado, quando os tratamentos não são efetivos. Num acompanhamento de 602 pacientes com carcinoma hepatocelular, o tipo mais comum de câncer de fígado, os que tomaram o remédio tiveram um aumento de 44% na sobrevida. "É um tremendo impacto em se tratando de um tumor avançado, ainda mais porque não tínhamos nada a oferecer a esses pacientes", diz o autor do estudo, Josep Llovet, da Escola de Medicina Mount Sinai, em Nova York. Em relação ao câncer de rim, um remédio que mata o tumor de fome se mostrou mais efetivo do que a terapia-padrão à base de interferon. O Sutent evitou a progressão da doença durante onze meses, em média, contra os cinco meses do interferon. Outro estudo, também apresentado no congresso em Chicago, comprovou que somar o remédio Avastin ao interferon dobra as chances de conter o avanço da doença, em comparação ao uso do interferon isoladamente.
LINFOMA
EM TODAS AS IDADES
O primeiro anticorpo monoclonal, um tipo de terapia-alvo, foi lançado no mercado para o tratamento de um gênero agressivo de linfoma. Com mais de sete anos de acompanhamento do primeiro grupo de pacientes a se beneficiar da terapia, os médicos verificaram que houve um aumento nas taxas de cura da doença. Mais da metade dos pacientes tratados com o remédio MabThera associado à quimioterapia convencional continua viva. No grupo dos que se trataram apenas com a quimioterapia, pouco mais de um terço dos pacientes sobreviveu. Esse estudo foi conduzido por um dos principais especialistas nesse tipo de tumor, o médico Bertrand Coiffier, do Centro Hospitalar de Lyon, na França. "Um dado importante é que esse universo inclui pacientes mais velhos, acima de 60 anos", diz o oncologista Jacques Tabacof, do Hospital Albert Einstein, de São Paulo. Até o surgimento da terapia-alvo, pessoas de idade não podiam ser submetidas ao tratamento exclusivo com quimioterapia, por causa da extrema toxicidade.
O CERCO AO TUMOR DE PRÓSTATA
Divulgação
Eisenberger: presença brasileira nas pesquisas mais avançadas
O médico carioca Mario Eisenberger, radicado nos Estados Unidos desde 1973, é hoje um dos principais nomes por trás das recentes descobertas sobre detecção e tratamento do câncer de próstata. Eisenberger é professor de oncologia e urologia do Centro de Câncer da Universidade Johns Hopkins. Durante o Congresso da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, em Chicago, ele falou a VEJA.
NOS ÚLTIMOS ANOS, A EFICÁCIA DO PSA, COMO INDICADOR DA PRESENÇA DE CÂNCER DE PRÓSTATA, COMEÇOU A SER QUESTIONADA PELA IMPRECISÃO DE SEUS RESULTADOS. QUAL É, AFINAL, A UTILIDADE DO PSA? O exame tem um papel importante no acompanhamento da doença. Por meio dele, é possível monitorar a existência de metástases e a resposta do paciente ao tratamento. Mas o PSA não indica, por exemplo, quais os pacientes com risco de desenvolver tumores mais agressivos. Ele está longe de ser um marcador perfeito.
QUAL É O GRANDE FATOR LIMITADOR DO PSA? O PSA não é um marcador do câncer, mas um marcador da próstata. Os níveis de PSA refletem quanto desse antígeno está sendo produzido e lançado na corrente sanguínea. E, quanto maior a próstata, mais PSA é produzido. Isso causa uma enorme confusão, sobretudo entre os homens mais velhos com aumento benigno dessa glândula. Há ainda outros fatores, como inflamações ou infecções na próstata, que podem alterar as medições de PSA. Muitos pacientes com PSA normal (abaixo de 4.0) têm câncer. Em 20% deles, o PSA é menor do que 2,5. O inverso também é verdadeiro: muitos homens com PSA próximo de 10 não têm câncer nem serão diagnosticados com a doença ao longo da vida. O problema é que esses pacientes serão submetidos a biópsias desnecessárias. Além disso, em mais da metade dos homens diagnosticados com tumor, o câncer não causaria nenhum tipo de sintoma. O que acontece hoje é que muitas vezes curamos o paciente que não precisa e não curamos aquele que precisa.
EM SE TRATANDO DE CÂNCER, NÃO É MELHOR PECAR PELO EXCESSO DO QUE PELA FALTA? Não haveria problema com os excessos se o tratamento não tivesse efeitos adversos. No entanto, o tratamento radical, como a retirada da próstata, tem um impacto grande na qualidade de vida do paciente. O que se propõe atualmente é a observação ativa dos pacientes diagnosticados precocemente com câncer de próstata. Homens vítimas de tumores que se desenvolvem lentamente são monitorados com repetidas biópsias e exames de PSA. A escolha entre o tratamento curativo e a continuidade da observação é baseada na progressão da doença. Esse conceito é fruto da mudança de abordagem verificada nos últimos anos.
O QUE ESTIMULOU ESSA MUDANÇA? Os tumores diagnosticados atualmente tendem a ser muito menores e menos agressivos do que eram na década de 90, antes de o PSA se tornar rotina. Mas estimamos que entre 30% e 50% dos casos de câncer de próstata sejam tratados desnecessariamente. Não se vive para sempre. Imaginemos um câncer de progressão lenta: ele só iria causar algum problema quando o paciente chegasse aos 150 anos.
COMO OS PACIENTES REAGEM À PROPOSTA DE APENAS OBSERVAREM A EVOLUÇÃO DO CÂNCER? Para o médico, é algo lógico e sensato. Mas reconheço que é difícil para os pacientes saber que têm um câncer e, ainda assim, ter de esperar de seis meses a um ano para repetir os exames e biópsias de acompanhamento.
POR CAUSA DA PRECOCIDADE NA DETECÇÃO DO CÂNCER DE PRÓSTATA, MUITOS ESPECIALISTAS ARGUMENTAM QUE O AUMENTO DA SOBREVIDA AO TUMOR, REGISTRADO NOS ÚLTIMOS ANOS, É SUPERESTIMADO. QUAL É SUA OPINIÃO A RESPEITO? A sobrevida dos pacientes com câncer de próstata aumentou apenas na teoria, já que passamos a contar o tempo de sobrevivência ao tumor muito mais cedo. Não temos um grande estudo avaliando se a mortalidade caiu nos últimos trinta anos. Por isso, ainda não é possível falar em queda da mortalidade decorrente do mapeamento precoce do tumor. Em outras palavras, se existem menos homens morrendo de câncer de próstata hoje, ainda não sabemos. Dois estudos mundiais em andamento (um nos Estados Unidos e outro na Europa) têm por objetivo avaliar se as mortes de fato estão caindo. Eu acredito que a mortalidade deve ter caído, mas só esses trabalhos nos darão a resposta definitiva.