Ao avaliar as recentes respostas eleitorais, a ausência de mobilização popular e a moratória na intermediação da imprensa na formação da opinião pública, sociólogos deparam-se com o enigma do descolamento entre as perversões políticas e o comportamento refratário da maioria da população brasileira. O desvendamento deste aparente desvio moral talvez resida na confusão implantada pela máquina de propaganda do governo federal, que inculte a falácia do comportamento corrupto arraigado na natureza de todos os cidadãos, por meio de discurso em tom de ameaça: atire a primeira pedra..., ou, mais explicitamente, ninguém tem moral para argüir nada, porque os pecados de cada um seriam inconfessos. Difunde a fábula do “bom ladrão” - sobre aquele sujeito de desonestidade total e descarada que granjeou simpatia popular, ao criar nas pessoas, ao fim e ao cabo, a idéia errada de que ele havia de ser um refinado ladrão de passado bom -, e a teoria sobre o “bom selvagem” - todo indivíduo é bom, mas a sociedade o corrompe ao instigar seu patológico fureur de se distinguer. No entanto, não é válido que la garantie de l’obscurité seja usada para acumpliciar todos, pois a vida íntima dos cidadãos pode e deve ser indiferente para a república, e isso resulta da separação estrita entre o público e o privado. Nas palavras de Hannah Arendt: “O segredo do início e do fim de uma vida mortal só pode ser assegurado onde a claridade da dimensão pública não penetra.”
O jogo da luz e da sombra
Por óbvio, o individuo não vive inteiramente na sombra, mas exige, como garantia de sua existência na pátria comum, a proteção de sua identidade e a privacidade ante o olhar dos concidadãos e à ameaça da intervenção do Estado. Como condição para a fusão perfeita do cidadão com o corpo político, a república só se realiza quando a sociedade do direito contratual se torna uma substancial comunidade ética. Nesses termos, a publicidade republicana confia exclusivamente no voto silencioso do cidadão de bom senso, cuja responsabilidade só aumenta diante do fato de haver criminosos ou suspeitos em altos postos da hierarquia política. Ao assumir esse encargo, e apenas desse modo, o cidadão estará imune à sua banalização no âmbito da competição pública das palavras e dos atos.
Em contrapartida, a metáfora republicana de luz e sombra deve ser amplificada com força solar sob os atos dos agentes públicos, sob pena de se legitimar o governante fripon par necessité - mais conhecido hoje como populista malandro. Ética, moralidade, legalidade e outros princípios devem iluminar radiantemente a vida pública, a fim de se evitar a redução da esfera pública do Estado somente ao governamental, ao administrativo e à burocracia aparelhada por partido político, nessa ordem sintética. Impõem-se, portanto, a primazia dos interesses da comunidade livre dos cidadãos aos seus representantes, a quem entrega a chave do Erário e a honra da Pátria.
A contrapropaganda
Se o governante justifica seus “erros” na esfera pública com o façon de vie (“jeitinhos” ou vício de “tirar vantagens”) do petit bon homme, necessária a contrapropaganda eficaz. Se ela não existe, chega-se a conclusão de que o descolamento enigmático é uma conseqüência da falta de oposição política que não aceite o libera geral, o topa tudo por dinheiro. Em outros termos, não há falência nem moratória na intermediação da imprensa. A mídia tem posto de forma racional e frontal as contradições, crimes e traições do governo com suas propostas de campanha – são fatos e informações. Não é papel da imprensa mobilizar o povo. A sociedade civil se mobiliza, quando há representação política forte, objetiva, para ser alternativa de suas reivindicações. Então, a armadilha está posta: o homem, o petit bon homme, se revela à luz do público no seu voto silencioso e, à luz do público, a finalidade da política permanece às escuras.