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14/10/2024
Entre Aeroportos

Entre aeroportos

Faz tempo que não apareço por aqui, mas não por falta de vontade.

Em janeiro deste ano fui “escalada” para uma viagem a trabalho para Alemanha e isto mudou o ritmo do meu cotidiano.

Passei um mês dedicando-me ao que precisava antes de pegar o primeiro avião em Fevereiro, ou seja, estudo, labuta, deveres de casa, filho, cachorro, plantas e até  a meu marido.

Para aflição de meus sentimentos, estive impedida de destinar um momentinho para escrever, conversar sobre superficialidades ou mesmo ficar raspando o dedo no celular.

O resultado disto foi a superlotação de emoções,  presas e sufocadas num cantinho em minha mente caótica!

Voltei da Alemanha traumatizada com aquela língua estranha com som de arroto e entendida do porque fomentei por tempos uma antipatia genérica a este lugar.

Antes que este comentário possa soar “racista” : a origem de meus ancestrais é alemã. Acho que este tema é para outra história!

No verão oficial aqui no país de plástico, eu e meus filhos fomos para o Brasil ver nossa família, e o tempo que passamos aí não foi suficiente para reparar os 6 anos que estivemos longe.  Ainda, lamentavelmente, tivemos gripe que rendeu vírus para todos .

Consegui evitar viajar logo após voltar para os Estados Unidos.

Mas precisava ir à Costa Rica antes do fim de setembro.

Neste momento, estou em El Salvador a caminho de Costa Rica.

Entre um aeroporto e outro consegui, finalmente, um momento para fazer o que além de acalmar minha alma, eu tanto queria: “escrevinhar”.

Esta insossa narrativa é um sucinto resumo de desculpas a meu chefe e o óbvio motivo que me inspirou a rascunhar este texto, com o assunto do ano para mim- aeroportos.

Tem lugar mais heterogêneo, insípido e  instigante a um drama ou comédia?

Recheado de histórias de encontros , desencontros, despedidas, reencontros e um tanto de situações hilárias, o aeroporto é o lugar que desveste o Homem de suas máscaras habituais.

Rodeando o tema, foi  no exato instante que entrei no banheiro do aeroporto de El Salvador, que uma quase lastimável inspiração, despertou essa voz inepta ao silêncio.

Então, é da porta de entrada do toalete, que saio do prelúdio para as entranhas da experiência de ser personagem principal em banheiro de ninguém.

Incrivelmente os banheiros de aeroportos tem a capacidade de eternizar esbarros que talvez nunca existissem fora das adjacências deste lugar:  a comunicação das bundas peladas.

Quem nunca leu, por exemplo, uma boa história de caganeira em aeroporto?

Já pensaram quantas nádegas se sentam ou se equilibram dentro destes estreitos depósitos de dejetos humanos?

Bundas de nacionalidades diversas, limpas, sujas, elegantes, despojadas, entupidas ou “arreganhadas”.

Não fosse só isto, os banheiros falam de como vive um povo, de sua realidade econômica, de educação, de prioridades, sobre o coletivo, o individual empático (ou não), higiene e até a respeito do sistema de encanamento do país!

Verifique o tamanho da privada, o tipo de papel higiênico, se tem espelho, caixa para depósito de agulhas, secadores de mão ou papel toalha, sabonete, a porta, o espelho !  Analise o chão! Respingos de xixi?

Os banheiros são espaços dotados de atributos ímpares, incluindo a capacidade de desclassificar-nos dos arquétipos de perfeição, excelência e superioridade.  

Sentados na privada somos todos iguais, sem preconceitos, racismos, títulos ou honrarias.

Fica o exercício para quem tem um tempinho inútil para pensar nesta filosofia do cotidiano.

Mas por que pensei nisto em El Salvador?

Primeiro porque as normas de uso dos banheiros aí, são completamente diferentes dos Estados Unidos, por exemplo, no primeiro,  o papel higiênico é “projeto de lixa” e deve ser jogado  fora da privada, no segundo é “projeto de algodão” e deve ser descartado dentro do vaso sanitário, etc etc etc.

O segundo motivo foi porque na fila do banheiro que reencontrei Sandra.

As rápidas vivências nos aeroportos (entre pessoas, através de pessoas, pelas pessoas, por causa de outras pessoas) são capazes de transformar algumas horas em anos de aprendizagem!

Aqui vai a minha!

Cheguei no aeroporto de Houston apreensiva porque não conhecia a companhia aérea que voaria e pelos “disclaimers” que vieram na passagem, sabia que teria algum problema com minha bagagem.

Como quem procura justificativa para redenção pelos quilos a mais que provavelmente teria minha equipagem, comecei a olhar os outros passageiros e suas bagagens.

A gente enxerga o âmago através das malas !

A fila estava lenta e a moça do guichê fazia inspeção íntima nas bagagens, mochilas e sacolas . Ela saia do guichê para ver se a bolsa cabia naqueles “medidores” de tamanho para malas de mão.

Aquilo me apavorou !

Quanto vai sair esta conta ?

Foi então que reparei na Sandra, que estava na minha frente, carregando uma mochila metade vazia e  nada mais!

Ela conversava com um senhor aposto e escutei o sussurro do assunto.

Sandra contou que ia a cada tanto tempo para a Colômbia e ele com ares de preocupação, a questionou se não tinha alternativa melhor do que viver assim.

É verdade também que na fila à espera de atendimento nos guichês, o tempo de pé acaba incitando bisbilhotar, imaginar, criar suposições do que é a vida do outro. Por isto, a preocupação com o tamanho de minha mala foi para a segunda fila e deu espaço a uma viagem nas suposições !

"O  que faria uma pessoa viajar tanto para Colômbia apenas com aquela malinha? Só pode ser drogas! Claro! De qualquer maneira, ela precisa de roupa! Provavelmente ela tenha roupas na casa de alguém na Colômbia! Mas será que não levanta suspeita na imigracao?”

Mas eu gostei de vê-la .

Senti vontade de conhecê-la , algo em sua voz me trouxe conforto. Além do que ela devia ter calor como eu: seus cabelos estavam molhados presos num coque com uma presilha ! Como uso o meu nesta estação de fogo do inferno !

Nesta mesma busca pela bagagem ideal alheia, ao olhar para trás vi um casal bem diferente que me deu um aperto no peito.

Ela usava um vestido florido branco com flores vermelhas, uma casaquinho de lã marrom de botões, tênis estilo vans e tinha um lenço que cobria a cabeça.

Aparentava ser simples e jovem.

Sua bolsa era de tecido.

O rapaz carregava nas costas uma mochila e segurava uma garrafinha térmica que oferecia a cada tempo para ela beber.

“Que tristeza, ela provavelmente faz tratamento contra câncer! Como a vida pode ser pesada! Será que ele é namorado, marido, vizinho, amigo que a acompanha?

Quem paga o tratamento dela? Porque aqui é tudo tão complicado, e caro e ela parece uma pessoa humilde! Devem estar regressando a seu país.

Por outro lado, os acessórios que ela usa são “de marca”. Pelo menos ela parece estar confortável.

Mas talvez esta protuberância na parte de trás da cabeça dela, podem ser os cabelos presos.

Será que estou enganada e este lenço é de cunha religioso? Que assim seja!”

Eu e a senhora de olhos verdes éramos as próximas a sermos atendidas. Iniciei uma conversa sobre a demora no atendimento, mas fui interrompida pela atendente do guichê.

Todos entramos no avião rumo a El Salvador e destinos finais.

Chegando em El Salvador passamos mais uma vez pela segurança , com direito a máquinas, rx e pés descalços.

“Que absurdo! Mais uma vez? Mas se nem saímos de dentro do avião, por que esta inspeção? O que deu tempo de alguém fazer dentro do avião fechado acima das nuvens ? Mas algum motivo eles têm embora este voo tenha passado por uma das seguranças mais exigentes do mundo.”

Comprei algo para comer e um café expresso e sai andando rápido para achar o portão para o próximo embarque.

Fui parada por um rapaz que vigiava uma porta minúscula de vidro que dava acesso às salas de espera. Mostrei meu boleto. Quando tentei entrar na sala de embarque, uma policial me disse que não era permitido entrar com comida ou bebida a menos que comprovasse que tinha comprado dentro do aeroporto de El Salvador.  E também que além de uma nova inspeção na bagagem de mão, seria feita uma inspeção corporal e estava proibida a saída da sala até o voo.

A esta altura eu já tinha certeza que esta era uma rota de tráfico de drogas, relativamente comum na região.

Decidi sentar no chão do corredor comum, terminar meu café e ir ao banheiro antes de ser colocada em quarentena.

Foi aí que encontrei Sandra novamente. Na fila do banheiro. Ela me reconheceu e fomos juntas ao salão de embarque - seu voo era o mesmo que o meu para Costa Rica.

Sandra contou que trabalha numa instituição privada que presta assistência a imigrantes, e que há anos ela vai de casa em casa, verificar o que cada família necessita de documentação, alimentação etc, além de dar aulas de espanhol aos expatriados.

A família de Telma é colombiana e ela aproveitava suas visitas ao país para fazer seus exames de rotina.

Há algum tempo ela descobriu um câncer que se espalhou rapidamente.

O médico colombino avisou que ela precisava de tratamento imediato.

Na época ela não tinha seguro saúde nos EUA e até que conseguisse uma consulta, seu câncer estaria muito avançado.

Então decidiu começar a tratar-se na Colômbia e esperar que pudesse ser atendida nos Estados Unidos.

Este dia está por chegar, mas enquanto isto uma vez ao mês ela viaja sozinha a Colômbia, faz a quimioterapia e volta para Estados Unidos.

Sandra desabafou sobre seu cansaço e que tem esperanças em logo poder seguir seu tratamento de maneira tranquila.

Demos risada, falamos sobre assuntos sérios, trivialidades e sobre a vida !

Trocamos telefone e prometemos nos encontrar para um café.

Entramos no mesmo avião rumo à Costa Rica, meu destino final.

Mas não o de Telma.

Ela ainda ficaria várias horas no aeroporto esperando seu próximo voo à Colômbia.

Telma não usa lenço na cabeça porque já tem cabelos, viaja sozinha, e encontra apoio em seu grupo de trabalho e nas pessoas que atende em suas respectivas casas.

Quando entrei no banheiro em El salvador e imaginei o interessante que poderia ser escrever sobre as peculiaridades deste lugar chamado aeroporto, não poderia supor que este texto se desviaria a reflexão sobre tantos temas possíveis relativos à natureza humana, suas faces, seus olhares e sobretudo sobre a inaptidão inquestionável de julgar.

E para não deixar pesado demais…

Não sei se são os aeroportos, os banheiros ou as bundas, mas em alguns deles tenho certeza que há algum alucinógeno mágico e contagiante!

 

Daniele de Cassia Rotundo