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09/11/2022
Memória Seletiva Atemporal

É extremamente paradoxal a relação de como a sociedade humana tende a manter seus padrões mentais (impulsionados pela razão e emoção), frente a outras realidades, como por exemplo, a tecnologia.

Crescemos tecnologicamente e não regredimos neste sentido, ainda que ocasionalmente passemos por períodos com menor desenvolvimento. A sociedade humana aprende com as novas tecnologias e modifica padrões habituais para a obtenção de melhor conforto, segurança e saúde. Os livros técnicos apresentam vasto conteúdo sobre a expansão tecnológica impulsionada pela ciência, a qual molda a vida cotidiana e consequentemente a sociedade (e às vezes, até seus valores).

Se pensarmos num passado não tão distante, podemos devanear como seria nossa vida sem a tecnologia atual. Imagine viver sem eletricidade, iluminados por lampiões movidos por inúmeras substâncias (óleo de baleia, carvão, querosene, etc...), ou ainda, viajar grandes distâncias sem aviões... não poder se comunicar em tempo real com pessoas do mundo todo... não realizarmos transplantes de órgãos, que salvam inúmeras pessoas, permitindo uma vida digna ao invés do nefasto sofrimento agonizante à morte... também imagine como estaríamos vivendo com várias enfermidades (que estão erradicadas ou controladas) que mataram milhões de pessoas... Tente imaginar se nosso conhecimento ainda não compreendesse adequadamente o funcionamento do nosso corpo e como devemos cuidá-lo... não conseguir metrificar o tempo, segundos, minutos, horas, dias, meses, anos... Inegavelmente a tecnologia muda hábitos, contextos sociais e vários padrões perpetuados ao longo do tempo!!! E devemos tudo isso a exatamente o quê? Bom, poderia apresentar uma ampla lista de fatores, mas talvez um deles me chame mais a atenção neste momento: a escrita.

Desde as formas mais primitivas de comunicação escrita, nos preocupamos em registrar nossos erros e acertos para termos as melhores condições de uma vida saudável e equilibrada. Buscamos detalhar cada passo do avanço tecnológico, garantindo a perpetuação da capacidade de desenvolvimento. A escrita foi um diferencial muito importante para a disseminação do conhecimento, sem ela como “memória”, não teríamos alcançado o momento em que estamos e provavelmente ainda estaríamos utilizando o método da tentativa e erro para problemas cotidianos de séculos atrás. Mas tão importante quanto termos os registros, é reconhecê-los como fonte de aprendizado e memória pulsante para nossa existência. Mesmo que a tecnologia seja desenvolvida por uma pequena parcela da sociedade humana, todos são beneficiários e assim, reconhecem, ainda que alguns de forma subliminar, a importância dos registros como memória para o desenvolvimento humano. Não precisamos inventar a roda duas vezes ou testar remédios já comprovadamente ineficientes. Esta memória atemporal permite que aperfeiçoemos a roda e os remédios (em referencia ao exemplo citado anteriormente), melhorando cada vez mais as condições da vida humana. Definitivamente não poupamos espaço para a manutenção da memória tecnológica, independente do tempo e de qual ciência específica ela está associada. Assim, como uma verdadeira sociedade racional, garantimos a continuidade do desenvolvimento através das futuras gerações.

Assim como descrito no início do texto, o padrão paradoxal do comportamento humano em relação à tecnologia fica evidenciado na repetição dos erros amplamente registrados na literatura sobre valores sociais. Enquanto a sociedade se comporta de forma unificadora frente às tecnologias, por outro lado, se desagrega quando a temática reflete comportamentos sociais. Os valores de uma sociedade são basicamente alterados a cada três gerações, geralmente retornando ao seu início, o que demonstra um fracasso evidente da racionalidade frente aos padrões emocionas impulsivos. Não importa que tudo esteja amplamente registrado, não há entendimento para a compreensão dos erros sociais do passado! Assim, continuamos a repetir os mesmos erros desde o início da sociedade humana, ciclicamente, repetitivamente, sem surpresas, com elevada previsibilidade. Ainda que alguns digam que o tempo cronológico e até mesmo a tecnologia sejam responsáveis por tal padrão irracional, o que realmente fica evidente é uma memória seletiva.

A memória seletiva, em muitos casos, está associada ao fator emocional, o qual é delineado por ações incompatíveis com a manutenção social, como o poder e a falta de unidade. Entre cada geração ocorre a perda parcial do aprendizado, culminando no fracasso da manutenção de valores sociais essenciais para a coexistência humana. Então, onde estamos errando nos padrões sociais que acertamos em relação à tecnologia? Muitos acreditam que o sistema social humano tem por característica apresentar padrões cíclicos que raramente são alterados, porém ocasionalmente são mantidos frente a uma grande intervenção de ordem mundial, mas mesmo estes acabam por sucumbir ao tempo. Alguns antropólogos e sociólogos creditam esta repetição de falhas cíclicas ao aprendizado em si, que horas é mais intenso e outras fica subjugado. Porém, ao longo da história, tais padrões já foram significativamente registrados, então não parece lógico que a variação do aprendizado seja a fonte impulsionadora de tal padrão social repetitivo. Talvez a natureza humana seja limitada no sentido individual e isso acarrete em consequências coletivas, que de forma diferenciada cronologicamente, transforma a sociedade humana em uma colcha de retalhos com momentos totalmente diferenciados. Assim, possivelmente a diferenciação dos valores sociais essenciais, ainda que indiscutivelmente conhecidos, representa o momento de uma determinada escala geopolítica, a qual é totalmente vinculada à emoção e ao imediatismo, ignorando todo contexto de unificação social humana. Por outro lado, alguns pesquisadores atribuem esta diferenciação de momentos sociais justamente a força motriz para a restauração da ordem social, aonde pleiteiam um momento de grande conjunção social mundial para romper o ciclo existente.

Um lado pouco vinculado a estes pensamentos está relacionado à natureza humana egocêntrica, prepotente e egoísta movida exclusivamente pelo fator emocional. Ainda que reconheça seus erros do passado, a sociedade parece ter a necessidade de utilizar a emoção para delinear determinados comportamentos, enquanto se apoia na razão para outros. Onde o benefício imediato é alcançado pela razão, esta impulsiona o comportamento coletivista, porém quando este requer maior escala temporal e equiparação social, os padrões são moldados pela individualidade emocional, independente do conhecimento (memória) existente. Teorias mais complexas são formuladas continuamente para entender os motivos desta desvalorização do conhecimento existente. Algumas demonstram a ampla capacidade humana de buscar desculpas ou culpados em vez simplesmente aprender e alterar o ciclo, enquanto outras preferem culpar os mesmos padrões sociais que são considerados como essenciais para a manutenção da sociedade humana em um contexto mais amplo. Seja como for, tal comportamento é, no mínimo, inquietador! E remonta a necessidade de nos manter atentos as nossas imperfeições cognitivas frente a padrões emocionais que buscam na razão uma forma de justificativa para as maiores burrices que continuamos a perpetuar. Talvez a essência da memória seletiva seja apenas a conveniência momentânea, ou talvez este padrão destoante atemporal reflita a falta de maturidade social, devido à pequena representatividade cronológica de uma sociedade humana unificadora.

Matheus M. Rotundo