Esse “ causo “ aconteceu na cidade onde nasci, São Pedro, no interior do estado. Lá ainda existem muitas peculiaridades que nas cidades grandes não vemos mais. Aconteceu na ocasião do falecimento do meu padrasto, que fez a passagem nos meus braços. Eu e minha irmã ficamos ao lado de minha mãe, dando o suporte. Ele faleceu no fim de uma tarde e lá na cidade o velório fica justamente na entrada do cemitério.
Era noite quando começou a cerimônia e as pessoas que vieram, depois de um certo tempo começaram a ir embora… até que finalmente ficamos apenas nós quatro, eu, minha irmã, minha mãe e o defunto. Fazia muito frio e nós sentadas juntas, procurávamos nos aquecer. Entre uma conversa e outra olhávamos em volta e tudo o que víamos era um breu só.
Foi nesse momento que pensamentos funestos começaram brotar na cabeça das três… minha irmã se revelou uma medrosa em potencial e querendo ir ao banheiro nos fez ir junto com ela… parecíamos três robôs se mexendo sem olhar para os lados. Ao chegar no banheiro que ficava ao lado da sala principal, ela empurrou a porta com o pé, que ao abrir fez um barulho de ferro rangendo, o que nos arrepiou até os últimos pelos do … vimos então que a janela dava justamente para dentro do cemitério e só se via túmulos.
!Saímos as três correndo, nos atropelando e minha mãe coitada foi parar no chão, minha irmã quase se urinando toda, mas se negou a sentar na privada…A cena foi hilária, olhamos uma para a cara da outra e caímos na gargalhada, apesar de estarmos geladas de frio e de medo. Eu e minha irmã, tentamos convencer minha mãe que deveríamos fechar as portas e irmos embora, voltando só quando o sol nascesse, mas para ela isso era um sacrilégio, como iríamos deixar o defunto sozinho ?“ Mãe, ele já está morto, ninguém vai roubar ele daqui né”?Mas não teve argumento que a convencesse e apesar do medo que ela também estava, ficamos ali as três, mais pálidas que o defunto
.Nessas alturas, minha irmã não aguentando mais disse que precisava fazer xixi, ou seria mais um desastre… passar a noite “ mijada” ninguém merece. Decidimos então entrar de costas no banheiro, assim não veríamos os túmulos do outro lado… claro que ela mal conseguiu acertar o vaso sanitário e o chão ficou um lago…que barbaridade. E assim fizemos durante o tempo todo. Lá pelas tantas da madrugada, começamos ouvir um barulho estranho… o pavor tomou conta de nós. Era só ficarmos caladas e escutávamos um chiado. Achamos que tinha alguma coisa ali, morto ou vivo e ficamos tão apavoradas que resolvemos juntas ir ver o que era antes que caíssemos duras de medo.
Cada uma pegou uma coisa para se defender, bolsa, cadeira e até uma garrafa térmica. “Armadas assim”, fomos bem devagarinho pegar seja la o fosse que estivesse ali. Assim que ouvimos o barulho de novo, com os corações quase saindo pelas bocas, avançamos para bater num … saco de lixo que com o vento fazia barulho de plástico esfregando no chão… foi só lixo voando!Depois da emoção recheada de medo,caímos na risada. Realmente três mulheres sozinhas num cemitério, tem a imaginação muito fértil.
Voltamos para o nosso posto de velar o defunto que nessas alturas devia estar de “saco cheio das três mulheres corajosas que estavam ali”!Por volta das 5 da manhã resolvemos “dar uma espiada” no lado de fora e eis que vimos bem distante, um vulto vindo … pronto agora o pavor era de gente viva! E se fosse um ladrão, um bêbado, um louco… ah meu Deus, lá fomos nós pegar nossas armas ( cadeira, cesto de lixo e bolsa). Ficamos prontas para enfrentar quem quer que fosse. O “ vulto” percebendo que espiávamos a cada minuto, resolveu gritar de longe : “ primas, sou eu o Otávio” já temendo tomar uma surra das três que nessas alturas nem queriam mais saber se era morto ou vivo, mas ia apanhar de qualquer jeito. Foi um alívio… a gente ria e chorava enquanto contávamos para o primo o pavor que passamos naquelas horas sozinhas lá.
Ele coitado, foi pedindo desculpas por não ter pensado antes que poderíamos estar ali sozinhas, sem nenhum homem para nos proteger. De qualquer forma, ele nos aqueceu com umcobertor que trouxe e um café fresquinho que desceu como um néctar dos deuses. Graças a ele as horas passaram rápido e assim que começou a clarear o dia, as pessoas começaram a voltar, dando - nos a oportunidade de sair, esticar as pernas, sentir o sol no rosto fazendo com que todo o medo ou o terror que passamos sumisse como por encanto. Bendito seja o sol. PS. Com todo o medo que passamos, minha mãe nem teve tempo de sentir tristeza… até o raiar do dia.
Selma.