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03/08/2020
O peso das coisas

O peso das coisas

Quanto pesa uma página ?

Uma página ?

A página ?

Ou uma folha ?

A folha?

Depende .

Depende do peso que você queira e decida dar .

Uma folha de bananeira é mais pesada que uma folha da árvore de “ficus” ?

Uma folha de cartolina é mais pesada que uma folha de papelão ?

A página de um livro de 1000 folhas é mais pesada que a página de um bloquinho de anotações ( aqueles coloridos com cola na ponta) ?

Depende .

Se usar a folha de bananeira para cobrir queimaduras na pele ( uma de suas utilidades ), ela pesará menos que uma folha de ficus. 

Para quem não conhece as folhas de ficus,  geralmente são pequenas ou medianas e delicadas comparadas com as de uma bananeira.

Se usar uma folha de papelão para forrar o chão nu e proteger-se do frio ou do calor, o papel forte e robusto pesará menos que uma folha de cartolina .

Se usar a página do bloquinho para anotar as mazelas da vida , ela pesará mais que a folha de um livro de 1000 páginas .

É possível anular o peso real?

O mensurar é subjetivo?

E aqui está o sentido irreal que esbarra nos conflitos íntimos. 

O valor assignado ao peso, entendido como força motriz de índole emocional ou física, será sempre proporcional ao que cada um investir de energia e vigor no objeto principal.

E pode ser bem infantil esta charla, se usar o peso dado aos sentidos regidos pela máquina razão.

Claro que a cartolina não é mais leve que o papelão, se o valor mensurado e convertido em peso, for desconsiderado na forma matemática e medido pelo préstimo subjetivo e emocional; embora a folha de bananeira seja exponencialmente mais pesada que a de um ficus.

A necessidade de aliviar a dor fisica torna leve o objeto robusto.

Um exemplo: a página do livro só tem significado no contexto de todo o livro, o que faz com que tenhamos que carregar o livro para termos a página.

O bloquinho evidentemente seria mais leve!

Não se ele significar as marcas de segredos, tristezas, lamúrias representadas ainda que, como singulares expressões sem conexão com sujeito ou complemento.

O peso real não será anulado mas pouca valia terá quando ressignificado pela perspectiva subjetiva da compreensão de seu entorno sensibilizado por acontecimentos singulares.

Exemplo : você para o carro embaixo de uma ponte em uma avenida em São Paulo. Depara-se com homens, mulheres, crianças em condições de indigência. 

Olha para um canto e vê alguém deitado no chão esburacado, encolhido como uma bolinha esquelética.

O que você tem é um entorno pobre, miserável e caótico que, pretendendo que suas emoções possam caminhar livremente, influenciará o significado de uma ação que outrora seria pesarosa demais, se em outro contexto.

Carregar o papelão pesado que você pediu para seu estagiário levar ao porta malas do seu carro, deixa de ter o peso que legitimou sua preguiça, seu problema na lombar, e quase num instinto de ajuda a sobrevivência, não será tão pesado levá-lo até o chão para um par de pessoas desabrigadas na calada da vida.

O entorno agiu como agente ressignificativo baseado numa experiência subjetiva e o peso real foi redefinido.

Conclusão (minha): o peso real das coisas mensuráveis  numericamente pode não representar o peso real mensurável individualmente. Isto porque a carga poderá ser aumentada ou diminuída de acordo com o que seu cérebro entender mais ou menos ponderável em dada situação.

Sem julgamentos ou questionamentos, já escutaram que “cada um sabe o peso da cruz que carrega”? 

Esta teia estranha formulada em furtivas analogias, encontrará seu mundo perfeito em cabeçalhos saudosos da página original da vida, ou como preferir, na folha de seu livro pessoal e indelegável.

Qual o peso da página do seu livro da vida?

Qual o peso da página da vida?

Isto dependerá  da robustez de seus braços e da habilidade de seus dedos.

Quando escrevemos uma página (da vida) com músculos contraídos, nossa mão enrijece, fazendo com que a tinta da caneta escorra mais do que o simples gotejar necessário para uma caligrafia sutil na página do livro da vida!

Assim, as páginas subsequentes, além de marcadas por doloridas palavras da página carimbada, estaram borradas com o excesso de corante desta primeira,  viciadas e angustiadas pelas nódoas de vaidosos impostores silábicos.

As páginas ficarão mais espessas e seus braços e mãos cansados para recomeçar uma nova página, que por natureza artificial sentir -se- á toneladas mais grossa que uma virgem folha .

Seus nervos pouco a pouco estarão travados espalhando uma dor insuportável até o ápice da exaustão .

E quando chegar aí , a página escrita estará em seus milímetros pedacinhos lotada de letras, pontos, interrogações, sem espaço para nada mais .

Mas quanto pesa esta página?

A página que você começou contando sua história mais recente e terminou escrita pela caneta de ferro da culpa fundida em brasa molhada pelos suor da alma fatigada e em frangalhos ?!

Que despendeu dedicação fervorosa e espera que ela seja no mínimo fiel ao seu espelho de tormentos , alegrias , dúvidas , tristezas, inseguranças ?!

A que você desnudou-se ?!

Pesa muito e, por isto mesmo, neste ponto é hora de virar a página. 

“Mas tem tanta coisa nela !

Tanta história!

Foi uma parte única e singular .

Tão única que nada parece mais importante que ler e reler cada sílaba dela .

Não dá para virar a página.

Não dá!”

Você tem que fazer , acabou o espaço da folha.

Tudo cobra que o livro siga sendo escrito .

O vitimista saudosista recorda que se doou , travou tantas lutas para honrar suas verdades ali,  escreveu com tanta devoção que as demais folhas estão borradas e marcadas pela parte do conto que mantém embaixo das mãos calejadas.

Com medo do peso , e a certeza que sucumbirá a este mesmo medo , você decide colar pedacinhos de papel nas bordas da página e seguir escrevendo ali, no reduto cômodo de lamúrias .

Sem embargo, uma hora ela esgotara , lotada e deformada por tantos remendos .

Tão sem lógica, já que as folhas que seguem estão brancas, limpas esperando serem usadas .

Então, ela encontrará uma maneira de ser libertada!

A vida se revoltará !

Chamará sua atenção!

Porque ela segue e quer ser escrita num papel limpo .

E, se você  seguir ali , emendando notinhas em chumaço de celulose, prepare-se: a vida pode ser cruel quando veste o disfarce “de você” .

Ela será capaz de encher cada célula de seu corpo com a mesma informação contida na página exaurida.

Seus medos se tornarão reais, seu coração palpitará desesperado pelas lembranças, alegres ou não, agarrando-se ao sobressaliente dos clipes que seguram os remendos.  

Afinal a vida se fantasia de você. 

Que cruel a vida pode ser !

Já rastejando há tempos com a mesma página ela começará a rasgar- se , desfazer-se , apagar as letras , traços , desenhos .

Tudo nela regressara, pouco a pouco de onde veio: de seu coração , regado dos sentimentos limitantes da covardia em virar a página e prosseguir.

Você deu suficiente munição para que tudo que escreveu seja sombra “de você” .

Este “você” titubeante, enfraquecido, desacreditado.

As vogais e consoantes se enrolaram num emaranhado, e seu “eu” sentirá a angústia do passado escrito novamente.

Já não haverá nenhum controle de  você sobre você .

O disfarce da vida , o peso das mãos , a rigidez dos músculos parecerão um buraco negro sugando suas crenças e sua existência.

Sua única “razão” gritará desesperada que continue agarrada a página  remendada.

Mas já não haverá o que fazer em milésimos de segundo .

Será seu fim .

Corroído pela página escrita .

Humilhado pela vida que gargalha de seu desespero por ver seu próprio eu amedrontado com a ostentosa máscara de você diminuído ao mais desprezível de sua história .

Outra vez, quanto pesa esta  página de sua vida ?

Muito .

Muito mais do que você pode suportar .

Ela pesa o mundo .

Pesa como metal denso e frio. 

Que de tão pesada torna a vida inerte, parada, incapaz de mover por tanto peso.

Vire a página , vire a página , vire a página , vire a página , vire a página. Vire , vire , vire , vire .

Ela pesa muito !

Não posso !

Vire a página .

Um vento gelado entra por seu corpo e tudo fica escuro .

Você desperta .

E ali está ela !

Uma nova página .

Totalmente limpa, sem máculas , pronta para ser colorida.

Leve!

Vire a página. 

Ela não pesará nada mais que um toque suave entre o papel e a pele de seu dedo .

Porque querendo ou não a página virará .

A página sempre vira.

Decida que peso dará a ela!

O da folha de bananeira como cura de sua queimadura ? 

Ou a de um ficus espinhoso ?

Não contei mas a folha do ficus constantemente está espinhosa .

Ou da folha de papelão que serve para seu corpo seguir vivo ? 

Então, não contei mas a cartolina está sempre resbalosa de cola dos enfeites de outros.

Ou o peso da folha do livro de 1000 páginas da sua vida ?

Não contei mas o bloquinho é miserável , nele só cabem números pesados das amarguras anotadas !

Esta página é sua, assim como a decisão de quanto ela pesará. 

Daniele de Cássia Rotundo