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31/01/2020
Encontros & Desencontros e o tempo

Encontros, desencontros e o tempo (texto 1)

Contarei uma história que vivi nos últimos meses de 2019, que deixou interrogações e pensamentos carregados de emoções para serem desbulhadas da própria vida.

Uma visita de rotina ao dentista e uma passagem para o Brasil.

Eu não queria viajar para o Brasil justo naqueles meses.

Poderia tratar aqui o dente que começava a doer, dar um jeito de assinar a documentação que precisava.

“Você precisa ir!”. Era o que ouvia de todos que sabiam da “tal necessidade”.

Mas meu coração estava temeroso, algo estava errado.

As crises de pânico me acompanharam vários dias, noites mal dormidas e a sensação de que algo mais se movia no meu mundo.

Minha mãe enviou uma mensagem que não estava bem de saúde e talvez tenha sido a gota d’água para meu marido comprar a passagem sem pestanejar e despachar-me.

Dez dias antes da viagem ele alerta que preciso voltar sem atrasos, com tudo resolvido, porque ele se ausentaria tao pronto eu pisasse em solo americano (assuntos profissionais).

Embora não tivesse nenhuma intenção de ficar mais do que o tempo previsto, um peso a mais curvou meu dorso com angústia.

Uma semana antes, e ainda em estado de pavor, Denis (meu marido) é convocado para uma reunião em outro país, a título emergencial e regressaria um dia antes de minha partida rumo à Brasil.

Com estes percalços achei que seria salva pelo benfeitor senhor do destino!

Mas o que restou foi mais impaciência, receio e incerteza das causas ocultas desta viagem.

No aeroporto em Houston, meu filho abraçou-me e com a voz trêmula perguntou se eu realmente voltaria.

Tudo cheirava despedida.

A viagem foi tranquila.

Em São Paulo visitei meus tios que não via há muitos anos, e as horas com eles passaram apressadamente.

Meu coração seguia acanhado, mesmo com as várias ligações a meus filhos.

Chegando em Santos, respirei um breve alívio ao encontrar minha mãe.

No entanto, sua pequena Meg, uma senhora cachorrinha com 16 anos parecia dar adeus.

Será que eu vim até aqui por isto? Será que minha mãe mae e ela partiram?

Ou o susto progride sem por que?

Faltará tempo para ver a todos que gostaria!

Faltará tempo para andar onde eu queria!

Tentei priorizar o que realmente não tinha como deixar de fazer.

Meu primeiro dia em Santos foi uma visita ao consultório da dentista que minha amiga-irmã indicou bem antes de eu decidir ir.

Desci do Uber e escutei alguém gritando meu nome e logo avistei longos braços acenando.

Era um grande amigo: Dadinho. E seu abraço me fez acreditar que aquele espaço em que pisávamos era o melhor lugar do mundo.

Nossas conversas eram regadas com suas sábias palavras, engraçados comentários, e amor. Um amor de longa data.

“Daniiiiii.....que saudades, a Gi falou que você viria, ela ainda não chegou. Vamos tomar um café?”

“Pode ser depois da dentista ?”

“Sim, mais um depois da dentista! Vamos agora que há tempo para um cafezinho”.

Entrei na dentista pronta para pedir desculpas mas ela estava atrasada, eu estava em tempo.

Dadinho herdou de seus antepassados uma loja centenária localizada na esquina do consultório da dentista. E ali invariavelmente era o ponto de encontro dos conterrâneos santistas.

Decidi visitar minha irmã na Bahia e não menos que repentinamente, em 3 dias de Brasil, voava para Salvador.

Já a certo tempo, ela que se esbravejava com frequência: “Se querem me ver, venham logo!”

Foram 3 dias de felicidade, um contentamento que não sentia longa data.

Abracei, beijei, apertei, cheirei meus sobrinhos, cunhado, cachorros e gatos.

A despedida doeu como nunca. As lágrimas vertiam entre soluços profundos e enquanto colocava um anel seu em meus dedos pediu que eu me cuidasse e que não esquecesse o quanto ela me ama.

Aeroporto em Salvador, Aeroporto Internacional de Guarulhos, Rodovia dos Imigrantes.

Santos. Dentista.

Aquele dia fiquei 2 horas e meia sentada na cadeira da dentista. Não havia anestesia suficiente para a dor absurda que eu sentia.

Não havia razão para tamanha dor. Eu tentava descrever o que sentia e acabava no desconhecido que incomodava além do dente.

Estava atrasada e não sabia para que.

Sabia que o tempo corria e esgotava-se.

A dentista ofereceu carona até a casa de minha mãe .

Meu celular tocou e a Gi, Dadinho (o amigo) e Taninha esperavam que eu chegasse na loja para também me darem uma carona.

Descemos a escada do consultório e a porta havia sido trancada por fora, não tinha como sair.

O zelador não estava e teríamos que esperar, e ali, seria puro tempo desperdiçado.

“Gi, não me espera, a porta esta trancada e não dará tempo de ir com vocês embora”.

Desliguei o celular e o zelador abriu a porta.

Gi liga novamente: “tem certeza que não quer ir com a gente?”

“Está bem”, respondi depois de constatar que a discussão entre a dentista e o zelador seria longa.

Enfim havíamos conseguido um encontro: os quatro! Como antes e há mais de 30 anos.

Eles decidiram não me deixar em casa e fomos para a casa da Taninha.

Dadinho sentou-se a meu lado e as horas desfilaram imperceptíveis entre as palavras que direto despontadas do coração.

Um autêntico gentleman italiano por herança e predileção, um erudito boêmio, não podia faltar o vinho acompanhando aqueles palavreados desenfreados ( Um Anciano Crianza 2014, Tempranillo, para quem conhece vinhos).

“Por nós’!, brindou animado.

Eu protestei insistentemente em tomar uma taça.

Este seria o “tempo” para o vinho,aquele que nunca tínhamos para degustar as uvas espremidas porque não tinhamos “tempo” de deixar a vida passar, ainda que isto tivesse o preço de estarmos em constantes desencontros.

Este dia a Gi estava entretida em seus pensamentos e Taninha ouvia a conversa sem comentários.

Pizza.

Abri minha bolsa e tirei um molesquine para anotar uma frase de Dadinho: “ Estamos numa epidemia pior que a peste negra, o mundo esta em pânico. Vivemos o caos, precisamos aprender a reviver”.

A atenção voltou-se para aquele caderninho vermelho e minhas anotações. Ele disse que há muito não encontrava alguém que carregasse um moleskine na bolsa.

A noite terminou e o tempo não vira seu turno para trás.

Nos dias seguintes passei horas conversando com minha mãe, deitada nos pés de sua cama e comovida por algo.

Ela contou histórias de um tempo esquecido no passado, historias de desencontros e encontros

Descreveu o sabor dos reencontros acontecidos em tempo inesperado que transformaram paulatinamente as estradas por onde passou.

Choramos, rimos, tivemos nosso tempo, um encontro entre diversos desencontros sinuosos.

Não menos importante, me levou surpresa adentro com “a mulher do espelho”, e quase convenceu-me que ela é real!

E enquanto conversávamos as três, minha mãe ensinou-me (melhor seria ensinou novamente, porque só as mães acreditam que “podemos sempre”os novos truques de maquiagem, e me fez jurar que não seguiria saindo sem um batonzinho.

No auge dos meus 44 anos, minha mãe seguia entregando receitas de vida, para toda vida.

Finalmente estaríamos com ela ( eu e minha mãe), a fada madrinha, amiga: Re.

Já completava mais de uma década que não nos encontrávamos

Uma amiga que não via há mais de 10 anos!

Quando abriu a porta do elevador que dava acesso ao terceiro andar no apartamento da Re, pensei que meu coração pararia.

O tempo parecia não ter passado para ela: ainda uma linda mulher, de longos cabelos, dedos esguios e um universo de histórias de amor e desencontros.

Uma impressão nostálgica sustentou aquela tarde embebecida em lágrimas de alegria, pesares, recordações, sonhos.

A Re perdeu a pouco mais de um ano sua irmã, a Rafa. Jovem, mãe de 2 crianças, deixou um vácuo negro naquela familia. Câncer.

Permanecemos de mãos dadas e cada detalhe das histórias compartilhadas perfuravam irrestritamente o sentir alheio.

Este encontro foi referto do conto de desencontros.

Saindo do prédio de Renata, uma chuva forte açoitava o tempo distante e lavava minha alma do tanto “tempo distante”, permitindo que o amor fluísse e acontecesse sem medos.

Sim, talvez eu precisasse ver a Re mais uma vez. Mas mais uma vez por que?

A sensação de despedida crescia a cada dia que eu encontrava tanto, e a tantos!

Penúltima noite no Brasil e uma enxurrada de “até logo” esperavam inquietos.

Cheguei bem depois da hora marcada para a bem-vinda do desencontro iminente.

Num pitoresco bar, finamente decorado entre o vintage e o revolucionário por seus donos portugueses, estavam Gi, Dadinho e Taninha e Mau (apelido do marido da Gi, Mauricio).

Eu não me senti a vontade pela primeira vez em anos de amizade.

Algo estava fora do lugar, como uma nuvem que dança acima de nossas cabeças, deixando uma névoa nos pensamentos, sem permitir, todavia que escape a beleza de seu contorno.

Cansados, após poucas horas decidimos ir embora.

Dadinho levantou-se e enquanto contava suas piadas galhofeiras, recolhia suas sacolas pronto para sua típica saída “a francesa”.

Ele tocou meu ombro e virei encontrando aqueles olhos claros, de uma profundidade veemente e disse:

“Dani, Deus abençoe sua família linda, vai em paz, siga seu caminho e saiba que eu amo você , minha “figliota”; eu nunca gostei de despedidas, então sairei de seu lado como se hoje fosse apenas um dia qualquer”.

Então, segurou meu rosto, olhou atravessando meus segredos bem guardados, beijou minha face e saiu de meu alcance.

Sem palavras abracei cada um deles, e um “eu te amo” foram as últimas palavras que pronunciei ali.

Hora de partir!

Deitei ao lado da pequena Meg, e mais uma vez exaltei minha gratidão pela incondicional amorosa convivência que tivemos. Relembrei que já era no mínimo a terceira vez que me despedia “para sempre” dela, mas ali, ela estava firme numa lição do significado de “querer viver”.

Não pude deixar de cogitar que talvez ela estivesse ali porque o amor que tem por minha mãe seja grande demais para deixa la só.

Abracei mamãe, consternada em seu ombro. Ela, com seus olhos cor de amêndoa madura, consolava a saudade que impregnava tantos anos entre nós.

Sem dissabores, falsetes do cotidiano, terminavam-se os ciclos que ali fui vivenciar.

Já no avião eu repassava os dias.

Lembrei de outros interessantes encontros: o motorista do Uber, um adulto senhor dividido entre sua casa e uma nova família; um mocinho paraibano que nunca “desceu a Serra” e contou sobre sua trajetória nos 7 anos de São Paulo; o dono do cafezinho meia boca na XV de Novembro, que em ato heróico mantém aberto seu estabelecimento em meio a zorra completa do centro da cidade.

Também encontrei a manicure; a moça da padaria da esquina, uma donazinha que trabalha ali, há tempo sem medida; esbarrei na colega da minha irmã, em Cruz das Almas, e ela contou como costumava faltar água no Recôncavo Baiano.

Em Cachoeira, encontrei a Ponte de D. Pedro, que por acaso estava sendo restaurada por meu cunhado engenheiro.

Foi ali também que no Cantinho da Nega, um barzinho a beira do rio, encontrei duas árvores eternamente enamoradas com seus troncos pendentes agarradas por suas copas.

Por fim, conclui que minha estadia tratava de um aprendizado célere sobre encontros, desencontros e o infinito tempo.

O que eu não sabia é que em minha bagagem escondia-se um completo tirocínio deste trio.

Dia 25 de Novembro de 2019 cheguei em casa.

Os dias atravessavam o tempo, meu marido viajou, voltou, encontramos, desencontramos, sem tempo para arreglos de dúvidas existenciais.

Dia 24 de Dezembro o céu amanheceu nublado, acinzentado.

Queria um Natal especial para nós quatro (eu, meu marido e meus dois filhos pequenos) diferente dos anos anteriores que comemoramos com o pesar da distância dos familiares e amigos.

Meu celular tocou e uma notificação mostrou o nome de uma amiga querida que desencontrei no Brasil.

No mesmo instante que comecei responder, ela ligou por vídeo.

“Ruiva.....” seu rosto estava branco pálido, seus olhos inchados e meu sorriso rapidamente transformou-se em dor.

“O que aconteceu Mari?”

“O que você acha ruiva? Aconteceu o que ia acontecer”

“Dadinho morreu”

Daniele de Cassia Rotundo Lima

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