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23/03/2018
Os pagadores de promessas

Se pensarmos em tudo o que vemos desde que nascemos, “parece” que os nossos olhos sejam uma câmera de vídeo que, por onde formos vai filmando tudo para ficar registrado no “espaço” inesgotável donde se situa o arquivo da nossa memória. Nesse arquivo é que está o universo de cada um. Pode-se dizer que nesse arquivo está o que e o como é cada um. A vida é uma série de acontecimentos acompanhados de estados de consciência correspondentes a eles. As novidades interessantes ou fatos mais marcantes são estímulos para serem registrados na memória. Sem tais estímulos, o transcorrer do viver diário não perdura na memória e nem fica registrado tornando-se esquecido. Muitas pessoas reclamam que os seus cotidianos são sem graça e são mesmo porque elas sempre têm a mesma convivência. Isto é, estão sempre nos mesmos lugares e estão sempre na mesma rotina. Nada tendo de alarmante, interessante e importante em seus dias para reterem na lembrança, para tais pessoas seus dias vividos passam como se não tivessem existido. Suas vidas parecem ser vazias de conteúdos.

Dias depois de uma sexta-feira santa, saindo da minha rotina (risos) eu e um amigo estivemos na cidadezinha de Pirapora. Nós vimos defrontes a igreja de lá várias cruzes de madeira amontoadas. A curiosidade nos levou até perto delas e eu me detive a olhar para os seus detalhes. Eram compridas e tinham identificação do lugar, ou melhor, das cidades de donde elas vieram trazidas pelos que estiveram pagando suas promessas. Na junção entre as madeiras, digo, na união da madeira que era vertical com a outra que era horizontal, elas tinham um travesseiro amarrado (não de todas) que serviu para evitar que os ombros de quem as transportaram ficassem doloridos. Na ponta inferior delas (não de todas) havia duas rodinhas para evitar que a cruz se raspasse no chão e que serviam também para facilitar o transporte “manual” delas vindo de longe, de outras cidades até Pirapora.

A cena lembrou-me do filme brasileiro “O pagador de promessa” de 1962 que ganhou como prêmio a “Palma de ouro” no Festival de Cannes, na França. Naquele filme, o padre da cidade donde estava à igreja do enredo do filme, ele se recusava a receber a cruz no interior da igreja do então pagador de promessa do filme. Eu não soube se em Pirapora aquelas cruzes que estavam amontoadas no exterior da igreja haviam sido introduzidas para dentro dela pelos seus “donos”. Talvez elas tenham sido benzidas pelos padres lá fora mesmo onde eu as vi, defronte a igreja. Por isso, penso que, dentro da igreja elas, como eram várias e enormes, iriam atrapalhar a cerimônia religiosa daquele mais sagrado dia para os religiosos.

Outra sexta-feira santa se aproxima neste mês de março de 2018 e não sei se lá em Pirapora, vizinha da Cidade de Parnaíba ainda virão outros pagadores de promessas carregando cruzes iguais as que eu vi no dia em que lá estive. Naquele dia de quando vi aquelas cruzes elas foram estímulos para que minha memória as registrasse. E veio-me na mente aquele conhecido dizer: Todos na vida têm sua cruz para carregar. Isso significa que todos durante suas existências se defrontam com muitos problemas. Eu também ainda carrego a minha cruz, mas, não é sempre que me lembro dela. Talvez porque na minha idade o “tanto faz o que aconteça” seja a indiferença ao lidar com as adversidades provenientes de circunstâncias indesejáveis.

 

Altino Olimpio