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28/04/2016
A mulher do Chiquinho

A mulher do Chiquinho

Sempre que volto ao passado me vejo menino sentado no sexto e último degrau da escada que era o acesso da rua de chão batido para a minha casa. O cachorro preto e branco Lulu sempre ao meu lado. Daquele lugar eu vislumbrava tudo ao meu redor. Do outro lado da rua havia a cerca antes do barranco íngreme que se precipitava até o rio. Por sobre a cerca, os fios de energia elétrica indo de um poste a outro serviam de apoio para as andorinhas. Eram muitas enfileiradas lado a lado quietinhas e até pareciam me observar como eu as observava. Mas, naquele dia... Também, bem à minha frente, do outro lado da rua, num espaço plaino antes do início do barranco que findava no Rio Juquery, lá estava à garagem da motocicleta Harley Davidson de 1.200 cilindradas do meu pai Alberto Olimpio.

Ao meu lado esquerdo eu tinha como vizinhos a família do Chico Pastro e depois dele a família Bertolazi. Os vizinhos da direita eram a família do Antonio Polato, depois, a família do Danilo Valbuza e por último a família do Domitilio da Silva. Mas, naquele dia perdido no tempo... Aquele local que com poucos detalhes descrevo era conhecido pelos moradores do Bairro da Fábrica da Indústria Melhoramentos de Papel do ainda Distrito de Caieiras no início da década de cinquenta do século passado. Naquela década, aquele bairro com suas vilas, eram silenciosos, até monótonos tendo poucos acontecimentos para se comentar. Os cotidianos quase sempre eram sem surpresas.

Parecia mesmo o viver num condomínio fechado, distante das tribulações da cidade grande como a Cidade de São Paulo. Entretanto, num dia parecido ser igual com qualquer outro dia, ele se diferenciou. Ocorreu um fato lamentável alterando a rotina monótona do lugar. Garoto ainda, eu estava também na beira do rio assistindo uns rapazes pescando. Dos conhecidos só me lembro de dois deles, o Gumercindo da Silva e o Milton Siqueira. O Milton não era daquelas “bandas” e foi uma surpresa vê-lo por lá, pois, ele morava nas proximidades da portaria de entrada da fábrica de papel. Naquela distração da pesca fomos surpreendidos por uns barulhos estranhos “TUM, TUM, TUM, TCHIBUM” acompanhados por gritos de criança “MÃE, MÃE, MÃEEEE”. O que teria causado aquele susto? Pareceu o rolar de uma enorme pedra aos pulos que caiu ao rio. Logo, na correnteza do rio que “estava cheio” por ter chovido naqueles dias, primeiro apareceu boiando um maço de cigarros, depois um chinelo e a seguir emergiu o corpo de uma mulher ainda viva que logo submergiu sendo levada pela correnteza do rio. Acabou a pescaria! Inesperada, aquela cena foi muito forte.

Assustados, quem estava na beira do rio subiu o barranco para a rua. Atrás da garagem da moto do meu pai, sozinha e chorando estava a pequena menina que havia gritado pela mãe. Então, se soube que fora um suicídio da mãe dela. O barulho que ouvimos foi devido aos pulos com que aquela mulher desceu pela ribanceira até ao rio. Hoje, quando me lembro, ainda “ouço” os gritos de desespero daquela menina. Não me lembro de quem da vizinhança ficou tomando conta dela até quando algum parente viesse buscá-la. A triste notícia se espalhou pelo lugar e se ficou sabendo que aquela mulher era a esposa do “Chiquinho”. Lembro-me que ele era “ponta direita” do time de futebol do clube local, o Clube Recreativo Melhoramentos.

O corpo da mulher só dias depois foi localizado rio abaixo pelo “corpo de bombeiros” que fora acionado.  Vi da minha casa quando o caminhão transportando-a na carroceria e rodeada por algumas pessoas passou pela minha rua. O que teria motivado aquele “por fim a vida” daquela mulher? Por que mostrou para a sua filha a sua morte? Não se preocupou com o “trauma de infância” que poderia prejudicá-la no futuro? São perguntas sem respostas. Sempre ouço dizer que o passado é passado e deve ficar no passado.

Contudo, nós os seres humanos, somos registros de tudo o vivido durante a existência pregressa. Os presentes são de momentos ininterruptos da vida no tempo para fatalmente se transformarem em passado. Às vezes algum “registro” de algum fato da memória surge ou ressurge porque são partes de nossa existência, de nossa história. Desconsiderá-los não os tornam inexistentes. A triste história da “mulher do Chiquinho” faz parte da história da vida daqueles poucos que assistiram ao seu suicídio, embora, possa estar esquecida ou no não querer lembrá-la. Se me lembro é porque quando me “vejo” no passado sentado naquela escada “revendo” as imediações donde era a minha casa, sempre me “reaparece” a lembrança daquele dia, daquela cena comovente de uma mulher atirando-se ao rio. Se eu desconsiderasse o passado, esta história não poderia ser contada.

                                                                                       Altino Olympio