Versão para impressão

09/05/2012
O dia em que saí de casa .

Era uma tarde ensolarada de domingo. Estávamos brincando de pique, quando vi meu pai chegando à porteira do sítio, vindo da cidade com sua charrete e nossa égua ligeira. Como sempre fazia, corri desesperadamente para abri-la na esperança dele ter trazido minha tão sonhada bicicletinha. Mas eram tempos difíceis e o meu sonho foi sendo adiado. Fora o dia de Natal, meu presente sempre foi uma enxada amolada ou um facão para cortar cana.  Homem de pouca conversa, ao apear da condução, disse-me: - Nenê - este era meu apelido -, pegue a cadeira e a tesoura, sempre cega por sinal, traga para o terreiro e vamos cortar este cabelo. O corte tipo, meio tigela, com “caminhos de rato” era o único que sabia. Assim era chamado um corte mal feito.
Amanhã você começará a estudar em S.Carlos no colégio dos padres, trate de tomar um bom banho para tirar o encardido dos pés, mãos e pescoço. Não se esqueça de lavar bem as orelhas. Tratava-se de uma sujeira crônica nos guris da roça. Também pudera, banho tomava-se apenas às quartas e aos sábados. Nossa banheira era uma bacia com água amornada no fogão à lenha. Sabonete? Nem em dia de festa, quando usávamos, era como desodorante. No cotidiano usávamos sabão de cinza mesmo!
  Este dia foi o marco zero da minha desmama. Senti uma grande alegria, mas ao mesmo tempo uma profunda ansiedade que foi, aos poucos, foi se transformando em tristeza. Meu destino estava traçado. Tinha chegado a hora de sair de casa e conhecer outras plagas Brasil afora. “No dia que saí de casa, minha mãe me disse: - filho vem cá, passou a mão em meus cabelos, olhando em meus olhos, começou chorar”.
Foi a primeira vez que vi minha mãe chorar escondido e baixinho. “Eu sei que ela nunca compreendeu os motivos de eu sair de lá, mas ela sabe que depois que cresce, o filho vira passarinho e quer voar”, às vezes acho que fui expulso do ninho. 
No dia seguinte, às quatro da madrugada, já estávamos acordados e prontos para partirmos rumo ao desconhecido. No primeiro trecho fomos de charrete, afinal a cidadezinha não ficava tão longe. Depois seguimos numa velha jardineira até ao colégio. Eram apenas vinte quilômetros. Muito longe para quem nunca tinha saído da roça e feito o primário, distante três quilômetros de casa.
  Estava chovendo neste dia e por falta de guarda chuvas, minha mãe sugeriu que eu levasse a sombrinha da minha irmã. A gozação foi de arrepiar, era de mariquinha pra cima e a “sombrinhada” na cabeça do infeliz gozador correu solta. “O mundo judia, mas também ensina, estou contrariado, mas não derrotado, eu fui bem guiado pela mão divina”.
Foram oito longos anos de aprendizado. Anos de muitas dificuldades, principalmente financeiras. Tornei-me atleta e campeão por necessidade. Mesmo atrasando as mensalidades, não podia ser expulso, pois a certeza de troféus e medalhas para o colégio me protegia. Meus bons tempos na roça, definitivamente estavam ficando para trás. Chegou a hora de morar longe de casa – a faculdade foi meu próximo desafio. “Eu bem queria continuar ali, mas o destino quis me contrariar e o olhar de minha mãe na porta, eu deixei chorando a me abençoar”.
  Piracicaba distante 120 quilômetros me esperava. “Piracicaba que eu adoro tanto, cheia de flores, cheia de encantos”. Fui conhecer a gloriosa “LUIZ DE QUEIROZ”. Foi amor à primeira vista. Encantadora com seus prédios centenários e seus exuberantes bosques entremeados com imensos e belos jardins. Uma verdadeira obra prima!
Minha tralha, composta de uma caminha de campanha e uma mala de corvin - plástico metido a couro. Nela foi um parco enxoval. Mas o que me vem na lembrança é o cobertor tipo “sapeca neguinho”, a botina com salto carrapeta e uma conga - parente remoto do tênis. A blusa de frio tipo “japona”, coisa brega, mas chique na época fazia parte da tralha. Sua gola de fibra sintética imitando pele de coelho combinava com uma camisa “banloon” gola olímpica. Nois é caipira, mai tá na moda.
Uma vez inscrito no cursinho, disse-me o velho: - meu filho se vire para passar na primeira tentativa, pois não tenho recurso para mantê-lo por mais de dois meses. Senti na sua voz embargada e nos seus olhos lacrimejantes, uma profunda tristeza. Pensei: - É passar ou passar. Meu pai merece este presente!
- Onde você vai morar meu filho? – Não sei pai, mas pare nesta república de estudantes aí na frente e lá conseguirei um cantinho para ficar. Assim foi. Desci as tralhas e sem dizermos nenhuma palavra nos despedimos com um afetuoso e forte abraço. Foram lágrimas sentidas e uma dor fininha tomou conta de minha alma. Era um quartinho tenebroso no quintal. Não tinha janela, apenas uma porta estreita, mas pensei: para quem está na guerra, qualquer buraco é trincheira.
  Entrei na faculdade na primeira tentativa e esta emoção foi uma das maiores já sentida em minha vida. Maior que esta só dia da minha formatura. Para me sustentar, fui morar na casa do estudante onde lavava bandejão, vendia livros, fazia estágios, carpia quintal dos amigos ricos e só andava de carona. Valeu a pena, pois minha alma nunca foi e nunca será pequena!
A lição que aprendi desta passagem? “Quando não deixas partir o teu filho para a vida, começas a perdê-lo, porque nunca o verás voltar para ti livre e maduro”. Agradeço aos meus pais, que apesar de sentirem apertos em seus corações, deixaram-me partir.
E VIVA A VONTADE DE VENCER!
[email protected]


Osvaldo Piccinin