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09/05/2012
Dito sorveteiro

Parece que foi ontem, mas faz cinqüenta anos que saboreei um picolé de coco queimado pela primeira vez. Na nossa cidade só tinha uma sorveteria pertencente ao saudoso Mané Varanda - ficava na esquina da praça central.
Além de fazer vendas no balcão ele também as fazia nas ruas da cidade, através do Dito preto ou Dito sorveteiro, como era mais conhecido.
Esta figura humana de extrema simpatia e profunda dedicação ao trabalho, percorria as ruas da cidade pelo menos duas vezes ao dia - uma pela manhã e outra à tarde. Seu carrinho azul claro era equipado com uma estridente buzina, para chamar a garotada, e uma sacola pendurada no guidon para botar as garrafas vazias trocadas por picolés, que no verão, derretiam-se rapidamente, melando nossas roupas.
Interessante que ele recebia mais garrafas do que dinheiro e preferia as de cor escura, porque segundo ele na fábrica de Tubaínas, tinham mais valor. Um detalhe importante: antes de aceitar o vasilhame, passava o dedo na boca da mesma para verificar se estava quebrada. Quantas foram as vezes que fiquei de garrafa na mão e sem sorvete por estar com um vasilhame defeituoso! Mas aí entrava a bondade do Dito - nos dando crédito para pagarmos na sua próxima passada. Os sabores eram sempre os mesmos: coco queimado, coco branco, groselha, abacaxi, limão e nata - nomes estes pronunciados centenas de vezes durante o dia, para cada menino que perguntasse: - O que tem hoje Dito? Santa paciência!
  As garrafas eram disputadas a tapa entre a molecada e nossas mães e avós tinham que mantê-las escondidas porque senão viravam picolés. Eu o conheci ainda criança e cresci chupando seus picolés. Fiquei adulto e ele continuava na labuta para defender o pão de cada dia - parecia nunca envelhecer. Penso que deve ter morrido com noventa anos de idade ou próximo disso. A bem da verdade, ninguém sabia ao certo porque sua verdadeira idade era guardada à sete chaves. “Aquele que mantém sua essência... também conserva sua aparência”.
Seu uniforme era impecável: congas ou alpargatas, um jaleco branco contrastando com sua pele negra, calça escura e um chapéu de nylon na cabeça, cobrindo provavelmente, sua vasta careca. Segundo a lenda, não o tirava nem para dormir. Seres humanos como eles ajudaram a construir a história da minha pequena Ibaté.  Pessoas simples, de alma pura e de caráter inquestionável.
  Morava com sua mãe mais um irmão na vila Bandeirante. A casa de barro coberta de sapé e chão batido era a mais humilde da vila. A compra do mês fazia no armazém do Inácio, onde eu trabalhava e por esta razão eu conhecia tão bem sua moradia. Compunha-se de uma pequena sala, um rádio Semp de quatro faixas no canto, uma pequena mesa com três cadeiras empalhadas - por sinal furadas ao centro -, dois pequenos quartos e uma cozinha com fogão à lenha também feito de barro.  Todas as vezes que eu ia entregar seus mantimentos, sua velha mãe me oferecia um copo de água tirado dum pote de cerâmica e um saboroso cafezinho – na maioria das vezes, requentado.
  Apesar de ser de pouca conversa numa ocasião lhe fiz a pergunta: - Você é feliz Dito? Ele me respondeu na bucha: - O que é isso? Será que você quer saber se gosto de viver? – É mais ou menos isso retruquei.
- Gosto sim, porque tenho saúde, amigos, casa para morar, ganho para meu sustento e da minha mãe, roupa lavada e passada e uma saúde de ferro. Além disso, falo com Deus todas as noites.
Você está certo amigo, precisamos de muito pouco para ser feliz. Você, além de ter vivido de forma feliz, fez feliz várias gerações vendendo seus picolés para refrescar nossa alma de criança.
E VIVA A PÁTRIA!
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Osvaldo Piccinin