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09/05/2012
Mula formosa

Assim como aquela música sertaneja - Besta Ruana - meu pai também teve uma mula que era seu xodó. Era chamada carinhosamente de Formosa. Para quem não sabe, ruana é uma cor da pelagem de animais, principalmente entre mulas e burros, e esta, também era a cor da pelagem da nossa mula.
Na roça, tínhamos apenas um velho caminhão que nos servia como condução para irmos à cidade nos finais de semana. Mas no nosso dia a dia, nos servíamos de charretes, carroças, cavalos e mulas, além do nosso velho trator Fordinho.
As tralhas de montaria ficavam num quartinho meio escuro feito de taipa, perto de nosso velho paiol de milho, onde também eram guardadas as ferramentas, sal boiadeiro, arame, venenos para a lavoura etc. As tralhas ficavam penduradas em ganchos da madeira, no teto do depósito sem nenhum contato com o chão, para serem protegidas dos ratos.
Formosa foi adquirida pelo meu pai ainda jovem. O velho gostava de domar ao seu jeito - descartava animal “bardoso”. Lembro-me que todo final de semana, durante um ano ou mais passou amansando sua paixão. O velho era vaidoso e não montava sem o chapéu quebrado na testa e uma bota sanfonada meio cano.
Cerimoniosa é pouco para descrever a maneira como ele a encilhava. Chegava com jeito e falando baixinho. Ia passando a mão em sua garupa com o braço esticado, para se prevenir de um possível e inesperado coice, até chegar ao seu pescoço e alisar sua crina. Aí então com sua tesoura de tosquia, a aparava com capricho, deixando um chumaço mais longo, de enfeite, perto da cabeça do arreio.
Em seguida colocava o baixeiro com cuidado e esperava um pouco até ela se acostumar para depois botar o charmoso arreio tipo “cutiano”. Na seqüência vinham as barrigueiras. Nessa fase, todo cuidado era pouco, pois ambas tinham que ser bem apertadas. Uma, na altura do lombo que prendia o pelego de carneiro ao arreio e a outra na virilha. Pelos corcoveados que o animal ensaiava dar, imagino que devia sentir cócegas ou quem sabe, certo desconforto.
Agora é hora de botar o freio. No caso, com abridão para “quebrar o queixo” do animal e torná-lo mais obediente ao comando das rédeas. Para deixar a mula mais bonita e “dar o acabamento” - como ele dizia - colocava um peitoril de argolas cromadas em seu pescoço.
Estava pronta a jóia de sete palmos de altura! Aí era só montar e sair desfilando colônia afora, sob os olhares da molecada que no fundo torcia para vê-la pular e conferir o traquejo do meu velho pai peão. Eram raras as vezes que o animal pulava, porque, quando montava pela primeira vez, já tinha certeza que a mesma não iria estranhar tanto, ao ponto de derrubá-lo.
Depois de amansada, eu mesmo tocava nosso gado leiteiro para ordenha. A Formosa parecia um automóvel, dizia meu pai, tal era a maciez de seu andar, tipo marchador. Trotava trocando as orelhas, principalmente à noite, onde a sua atenção redobrava.
Foram anos de convivência e serventia, mas como diz a música sertaneja: “um dia chegou a desgraça, no atalho da represa, caiu numa ribanceira, a Ruana ficou presa e quebrou as duas pernas e acabou minha riqueza”.
Realmente foi mais ou menos isso que aconteceu. Ao saltar um córrego em busca de um garrote arribado, quebrou a pata dianteira e estatelou-se no chão! Todo mundo sabe que o remédio numa situação dessas é um só - sacrificar o animal. Não há a mínima chance de recuperação.
Todos nós choramos muito. O estampido do único tiro disparado por um funcionário de meu pai em sua cabeça, nunca me saiu da lembrança. O lugar onde seu corpo foi arrastado e devorado pelos urubus ao céu aberto, também não. Nunca acreditei que aquela ossada esparramada pelo pasto afora pertenceu, um dia, àquela mula de estimação que fez parte de nossa família e de nossos sonhos por tanto tempo!
E VIVA A MULA FORMOSA!
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Osvaldo Piccinin