Já se vão ao longe as doces lembranças da minha saudosa infância! Passei os primeiros anos de minha vida entre o sitio onde morava, e a Usina Tamoio onde moravam meus avós maternos e outros parentes. Era o início da revolução industrial, onde tudo começou a mudar, inclusive o conceito paternal entre empregados e patrões. As leis trabalhistas viraram de ponta cabeça os direitos e deveres desta relação do “fazendão” Brasil.
A família Morgantti, proprietária deste centenário colosso industrial, nunca mais foi a mesma depois desta mudança. As ações trabalhistas vieram aos montes e a decadência foi inevitável. Prevaleceu mais uma vez o adágio popular: “Avô rico, filho nobre e neto pobre”.
Hoje quero falar do glamour e das minhas melhores lembranças desta época há mais ou menos meio século atrás. Moravam lá, perto de dez mil pessoas entre funcionários e familiares. Duas padarias, dois açougues, três armazéns (antecessor do supermercado), duas farmácias, e um grande ambulatório construído com os mais modernos equipamentos hospitalares, estes manipulados por uma equipe de dois médicos e três enfermeiras que faziam parte da infra-estrutura da usina. Duas ambulâncias ficavam vinte e quatro horas de plantão no movimentado ambulatório. Detalhe: os serviços ambulatoriais e odontológicos eram gratuitos.
As pessoas eram muito felizes e demonstravam muito orgulho de trabalhar lá. Os bailes de carnaval, banhados à lança perfume Rhodor, eram animados por bandas famosas, em seus dois clubes sociais – o Cruzeiro destinado aos brancos e o Rancho, aos negros. O mais incrível é que os brancos podiam freqüentar o clube dos negros, mas o contrário era proibido -, sem dúvida uma velada discriminação oriunda do Brasil colônia.
As ruas da usina eram todas calçadas com paralelepípedos e sinalizadas com placas de trânsito, pois lá transitavam automóveis, carroças, bicicletas, cavalos, ônibus circulares e intermunicipais. As casas eram confortáveis, forradas, cimentadas com vermelhão xadrez, banheiros, chuveiros com água quente – fornecidas pelos canos embutidos no fogão à lenha. Quase todo lar tinha televisor branco e preto na sala e uma imensa vitrola para tocar os “bolachões” de vinil (discos) - marcas de poder aquisitivo alto e de status.
Um estádio de futebol profissional muito bem cuidado era uma verdadeira obra prima, e lá eram disputadas partidas do campeonato regional e estadual. Também em suas dependências se realizava a confraternização de Natal para mais de dez mil pessoas onde saboreávamos um delicioso churrasquinho paulista num espeto de bambu, acompanhado de um pãozinho francês espetado na ponta. Todas as três mil crianças, sem exceção, recebiam presentes que nos eram entregues, um a um, pelo paciencioso e simpático Papel Noel.
Seus jardins floridos completavam o cenário de “coisa que tem dono”, principalmente aquele situado em frente à imensa e rica igreja - a mais luxuosa da região. As badaladas de seus sinos ecoavam por todo vale e extensão territorial da vila de funcionários, despertando-os para a missa nas manhãs de domingo. As pilastras e altares eram de puro mármore italiano, combinando com seu estilo gótico projetado por um arquiteto europeu. Lá fui batizado e também foi lá que vi as pessoas mais elegantes da minha infância. A missa aos domingos tinha seus melhores lugares disputadíssimos por senhoras e senhores bem vestidos.
Um imponente órgão musical sonorizava o recinto, fazendo coro com vozes afinadíssimas. As músicas sacras entoadas por todos, transmitiam emoção e nos proporcionava uma sensação de paz por toda semana. Sua abóbada celeste guardava semelhança com a Capela Sistina do Vaticano, e nos dava a impressão de que tínhamos uma linha direta com Deus. Por muito tempo fiquei a me perguntar: como o pintor conseguiu fazer aquela obra prima no teto?
Mas tudo isso é recordação. Voltei lá, dia desses, imaginando que tudo estava como antes. Para minha tristeza, a vila, as ruas, os jardins, menos a velha igreja que teima permanecer em pé, transformou-se num imenso canavial. Mais uma vez, o progresso atropelou uma belíssima e nostálgica áurea do passado. Estas belas lembranças guardo apenas em minha mente e coração. As ruínas deixadas pela destruição me levaram a fazer uma profunda reflexão: “Nossa existência é muito mais frágil do que podemos imaginar. Ponha a mão no peito e sinta as batidas do seu coração. Este relógio de sua vida tiquetaqueando a contagem regressiva do tempo que resta, um dia parará. Isto é cem por cento garantido, e não há nada que possamos fazer a respeito, portanto não dá para perder um único precioso segundo de vida”. A fila tem que andar!
E VIVA A PÁTRIA!
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