Versão para impressão

23/10/2006
Só Contra a Ignorância – Parte 2

Perguntaram ao Espinosa se foi verdade ele ter dito a alguns amigos que Deus podia ter um corpo, o mundo da matéria; que os anjos podiam ser alucinações; que a alma podia apenas ser a vida; e que o Velho Testamento nada dizia sobre a imortalidade? Não se sabe o que ele respondeu. Sabe-se que lhe foi oferecida uma pensão de quinhentos ducados se consentisse em manter pelo menos uma lealdade exterior à sinagoga e à sua religião. Ele recusou o oferecimento e em vinte e sete de julho de mil seiscentos e cinqüenta e seis foi excomungado com todas as sombrias formalidades do ritual hebreu. Durante a leitura da maldição, a nota arrastada e lastimosa de uma grande trompa fazia-se ouvir de quando em quando; as luzes que brilhavam fortemente no princípio da cerimônia foram sendo apagadas uma a uma no decorrer da mesma, até que finalmente apagou-se a última ---símbolo da extinção da vida espiritual no homem excomungado--- mergulhando a assembléia em total escuridão.

Considerado culpado, o conselho eclesiástico decidiu-se por anatematizar Espinosa e desligá-lo do povo de Israel com a seguinte maldição: Com o julgamento dos anjos e a sentença dos santos, anatematizamos, execramos, amaldiçoamos e expulsamos Baruch de Espinosa, estando de acordo toda a sagrada comunidade, reunida diante dos livros sagrados, contendo seiscentos e treze preceitos, e pronunciamos contra ele a maldição que Elias lançou sobre os filhos rebeldes e todas as maldições escritas no livro da lei. Que ele seja execrado durante o dia e à noite, etc e etc. Que o Senhor nunca mais o perdoe ou aceite; que a ira ou desfavor do Senhor, de agora em diante recaiam sobre este homem e apaguem seu nome de sob o firmamento; que o Senhor o aparte de todas as tribos de Israel e o marque para o mal, oprima-o com todas as maldições do firmamento. Por meio deste documento ficai, portanto todos avisados de que ninguém poderá manter conversação com ele pela palavra oral, ter comunicação com ele por escrito; de que ninguém poderá lhe prestar nenhum serviço, habitar sob o mesmo teto que ele, aproximar-se dele a uma distância de menos de quatro cúbitos e de que ninguém poderá ter qualquer papel ditado por ele ou escrito por sua mão.

Espinosa aceitou a excomunhão com tranqüila coragem, dizendo: “Ela não me obriga a nada que eu não fosse fazer de qualquer modo”. Seu pai, que sonhava com o lugar proeminente que seu filho ocuparia na cultura hebréia, mandou-o embora; sua irmã tentou tomar-lhe uma pequena herança; seus antigos amigos o evitavam. Ele foi morar num sossegado quarto num sótão, na Estrada Outerdek, fora de Amsterdam. Seus hospedeiros eram cristãos da seita menonista e podiam de certo modo, entender um herege. Gostavam de seu rosto tristemente bondoso e ficavam encantados quando à noite, ele descia para fumar seu cachimbo na companhia deles. A princípio sustentava-se ensinando crianças na escola de Van den Ende e mais tarde polindo lentes, como que insistindo numa tendência para lidar com material refratário, como, refratário foi contra a religião que o excomungou. Baruch de Espinosa faleceu em mil seiscentos e setenta e sete aos quarenta e quatro anos de idade.

Altino Olímpio