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Éramos Anjos

Num dia de semana monótono, vindo pela minha rua, um caminhão estacionou uns setenta metros antes da casa que eu morava. Os ocupantes do caminhão descarregaram muitos mourões de madeira, jogando-os barranco abaixo, onde era o quintal do rio do Sr. José Carezzato. Ele tinha um barco naquele quintal, usado para a travessia para o outro lado do rio, onde ele tinha um galinheiro, um chiqueiro e se me lembro, tinha também uma horta. Na tarefa de alimentar suas aves e seus porcos, ele revezava com o seu filho, o Pedro Carezzato. Assim que o caminhão deixou aquele local, eu olhei para o Zé Polatto, meu vizinho e que também estava no jardim de sua casa. Como nós, só pelo olhar já sabíamos o que precisávamos fazer, saímos pra rua e nos dirigimos até aquele quintal do rio. Lá vimos os mourões, uns sobre os outros por sobre a mata esmagada por eles. Na cerca sobre o barranco que acima dele era a rua, uma mata no alinhamento com ela, impedia a visão do quintal, de quem passasse pela rua. Sendo assim, eu e o Zé poderíamos trabalhar tranquilamente.

 

Nossa boa intenção era aliviar uma carga pesada de trabalho para os donos dos mourões. Eles eram compridos e pesados, mas, tínhamos que cumprir com a nossa incumbência. Como não éramos vaidosos, ninguém precisaria saber daquele nosso gesto voluntário. Um por um (como eram pesados) e eram muitos, porém, jogamos todos os mourões no rio. Numa fila comprida, todos boiando, eles seguiram rio abaixo. Foi uma cena tão bonita, confortante, um êxtase inesquecível que se exteriorizou em nossos sorrisos de alegria e depois em gargalhadas de crianças inocentes e felizes. Tínhamos medo da ira de Deus, mas, Ele nada impediu, talvez porque, assistindo-nos até deve ter sorrido. Ele sabia que nós, crianças ainda, ainda éramos anjos. Naquele dia, aprendemos uma lição que, poucos adultos aprenderam. Os mourões eram bem comportados. Nenhum queria passar na frente do outro, nenhum “furava a fila” como fazem os seres humanos. Um pau qualquer é mais educado do que eles.

 

Os mourões existiram apenas por um dia para “quebrar” a rotina de nossas benfeitorias. Passar pela rua naquele lugar, sentia-se fortes vibrações de tentações. Parece que existia lá algum espírito zombeteiro que nos fazia obedecê-lo. Da rua tínhamos que atirar pedras no barco ancorado do Sr. Carezzato. O ruído de pedra na madeira confirmava que tínhamos acertado no alvo, embora, devido à mata daquele quintal, tivéssemos pouca visão dele. Muitas vezes enchemos aquele barco de pedras e poucas vezes nós fomos admoestados por isso. O Sr. José e o Sr. Pedro Carezzato, pai e filho, sempre foram homens respeitáveis que muito trabalharam na vida. O Sr. José ou Zé Carezzato como mais era chamado, depois de se aposentar do seu antigo emprego na Indústria Melhoramentos, ele mudou-se para o Bairro de Perus que pertence à cidade de São Paulo e faz divisa com Caieiras. Continuou tendo horta e galinheiro no terreno de sua casa e enquanto lá viveu sempre forneceu ovos frescos para a minha esposa. Quando não se sentia bem, sua filha Eurides o substituía no fornecimento deles. Sendo tão boas, lembranças são o muito que temos no nosso continuar vivendo.


Altino Olimpio