Vinda da fábrica de papel, a estreita rua de terra, depois da casa onde nasci, prosseguia para a Vila Ilha das Cobras e até a Vila Leão. Aquele lugar onde eu morava e estando ainda na minha memória, constituído por três casas duplas para abrigar seis famílias, o lugar não tinha e nunca teve um nome, mas, diziam que ele pertencia à Vila Nova. È que, seus quintais em suave aclive terminavam nas divisas com os quintais daquela vila. Na primeira casa do grupo das três em questão, morava o “nono” Bertollazi com sua esposa Dona Tereza e seus filhos. Colada a primeira, na segunda casa morava o casal Francisco (Chico) e Nilda Pastro e filhos. Depois de um espaço entre as casas, na terceira, eu morava com os meus pais Alberto e Carmem Olimpio, Walter e Anita, meus irmãos. Conjugada com a nossa e sendo a quarta casa, nela, com os filhos morava o casal Antonio e Conceição Polato. Um outro espaço e na quinta casa quem morava era o casal Danilo e Tonica Valbuza e filhos. Conjugada a eles, a sexta e última casa, era a moradia de Domitílio da Silva, de sua esposa Luiza e dos filhos. A primeira, a terceira e a quinta casa, elas tinham suas cozinhas voltadas para o quintal do fundo e seus dormitórios para a rua. A segunda, a quarta e a sexta casa, elas tinham suas cozinhas de frente para seus jardins e para a rua e, seus dormitórios para o lado dos fundos dos quintais. As de número par tinham dois dormitórios e as de número ímpar tinham três Como as casas estavam num nível superior ao da rua, a partir dela, existiam seis escadas de acesso para elas.
Defronte, do outro lado da rua, acompanhando toda a extensão do alinhamento das casas, havia uma cerca comum e logo depois dela, uma ribanceira ia terminar por sob o rio. Da rua até o rio, a ribanceira também eram quintais divididos entre os moradores dali. Não havia cercas de divisas, mas, como critério estabelecido, elas eram uma continuação imaginária das divisas existentes entre as casas. Aquele espaço abrupto entre a rua e o rio, com suas bananeiras plantadas, era chamado pelos seus donos de “quintal do rio”. Um daqueles quintais do rio e no alinhamento com a segunda casa, a do Chico Pastro, tendo ao nível da rua, depois da cerca, um espaço plano maior antes da ribanceira do rio, ele foi ocupado pela construção da garagem da motocicleta Harley Davidson de 1.200 cilindradas do meu pai, vizinho do Chico.
Subterrâneo, construído de alvenaria e ficando no espaço entre a minha casa e a do Chico Pastro, vindo do alto da Vila Nova, um canal de esgoto seguia, descia, até a margem do rio. Lá, o canal terminava apoiado numa resistente parede de tijolos e a mesma com a abertura do canal em seu meio, servia também como um pequeno muro de arrimo para a terra detrás dela que, ficava por sobre o canal. Naquele local conhecido como “boca do esgoto”, devido aos despojos humanos que deslizavam pelo limbo do canal e caiam no rio, saltitavam muitos lambaris. Vez ou outra, nós, os garotos daquela época, sentados naquela parede, pescávamos muitos peixes. No mais das vezes, para pescar, usávamos “gutchins” (alfinetes de costura) entortados como anzóis. Como na ponta deles não havia fisgas iguais as dos anzóis, os lambaris e até mesmo os acarás, debatendo-se dentro ou fora d’água, eles escapuliam das imitações de anzóis e não devolviam as minhocas. Entretanto, se busquei na memória, as imagens daquele lugar de outrora, isto, serviu como intróito para uma historia lamentável.
Depois das chuvas e devido a elas o rio “estava cheio” e muito apressado com suas águas turvas e avermelhadas. “Tendo subido” as águas do rio encobriam a margem, o espaço de terra que existia entre ele e a boca do esgoto de antes de sua cheia. Por isso, para pescar, alguns meninos estavam sentados por sobre a parede da boca do esgoto. Dois deles, já na puberdade eram o Gumercindo (Baltazar) da Silva e o outro, o Milton Siqueira. Este, não era daquelas “bandas”. Se não há engano, ele, de outra vila, morava naquela da “subida da igreja” onde, mais os “chefes” da Indústria Melhoramentos moravam. Durante aquela descontração, pescando e conversando, Ouvimos à nossa esquerda, um barulho, alguns seguidos “baques surdos”, isto é, fortes batidas no chão e depois, o barulho de algo grande que mergulhou no rio mais ou menos assim: Tum, tum, tum, tum e Tchibum. Nós nos assustamos, pensamos que alguém tivesse atirado uma enorme pedra para atrapalhar nossa pescaria, ao mesmo tempo em que ouvimos uma criança gritar “mãe, mãe, mãe” e, também, vimos na correnteza do meio do rio, emergir um maço de cigarros, um chinelo e depois um pé humano. Emudecidos por aquela surpresa sinistra, ainda vimos à nossa direita, a uns trinta metros de onde estávamos e no local onde o rio se estreitava, vimos o rosto de uma mulher fora d’água, rodopiando onde o rio estava mais turbulento. Logo ela afundou, desapareceu e foi levada para o rio abaixo por suas águas lamacentas. E assim, terminou a nossa pescaria.
Como acontece, comentário posterior sempre existe. Comentaram que, antes da mulher afundar naquele estreitamento do rio e, estando ali o Sr. Antonio Polatto, meu vizinho, ela pediu-lhe para tomar conta da sua filha. Eu que a tudo assisti, não me lembro de tê-lo visto lá. Naquela primeira vez de ver alguém morrer, o rio, o maço de cigarros, o chinelo, o pé da mulher e depois o seu rosto por fora e entre as águas, aquelas cenas seguidas não saiam da minha cabeça. Também não, o som, a voz de uma menina que em seu desespero gritou “MÃE, MÃE, MÃE”. A mulher já com a intenção de se atirar ao rio, antes, deixou a sua filha de menos de dez anos de idade, atrás da garagem da moto do meu pai. Deve ter corrido aos pulos (os baques surdos que ouvimos) pela ribanceira e num último atirou-se ao rio. Que trauma deve ter deixado para a menina ainda tão pura e inocente. Soube-se depois do fato que a suicida era a mulher do conhecido “Chiquinho”, um bom jogador da posição de “ponta direita” do time de futebol do local. A procura pelo corpo da mulher foi demorada. Primeiro pelos moradores de lá que possuíam barcos e depois por membros da Corporação do Corpo de Bombeiros. Só depois de cerca de uma semana a mulher foi encontrada. Antigamente, um fato como esse emocionava a todos naquele pequeno lugar em que eram poucas as notícias de morte. Hoje em dia, um acontecimento como aquele do afogamento da mulher, ele não atingiria tanto as nossas emoções, pois, notícias diárias de mortes são da nossa rotina. Até parecemos ser indiferentes a elas. Seriam sinais do progresso e da evolução humana? Sei não!