Numa noite qualquer, dos anos 60, por alguma razão que não me lembro, a maquininha que fazia o transporte dos moradores das vilas da Fábrica, ficou paralizada. Para estas situações, a Empresa Melhoramentos disponibilizava então, os enormes caminhões “pau de arara”, com uma carroceria tipo baú pintada em verde, com bancos à volta e hastes de madeira e metal no centro onde, os que iam em pé, se dependuravam para seguir viagem.
Nesta noite embarquei num caminhão destes. O caminhão partiu da estação Cerâmica. Diferente da maquininha que trajetava pelos trilhos da estrada ao lado do rio, o veículo de quatro rodas só podia seguir pela serrinha, um outro atalho, cercado por um matagal e que terminava nas proximidades da Igreja São José da Fábrica.
Pela escadinha de três degraus, adentrei ao caminhão verde. Certamente eu devia estar com a minha madrinha (Dona Cida Sant’Anna). Nos acomodamos nos bancos laterais, como a maioria das mulheres e crianças. Os homens, agarrados às hastes foram se equilibrando com o balançar da “fera”.
Na metade do caminho, em íngreme subida, o caminhão quebrou e não pode prosseguir. Restou-nos seguir a pé, pela escuridão da noite.
Fomos em filas, em conversas compassadas pelos ruídos das folhas secas pisoteadas por nós. Fomos ouvindo ainda, o som de sapos , de rãs , grilos e gatos assustados atravessando o caminho. Tudo era assustador, mas harmônico e só de vez em quando uma conversava animada quebrava aquele silêncio quase que mortal. Lembro-me das vozes misturadas daquelas pessoas tão amigas. Vozes de gente boa e pacífica que, mesmo na adversidade conseguia se manter bem humorada. Lembro-me da fagulha provocada por algum cigarro aceso. Lembro-me dos contornos dos rostos dos homens fumando e lembro, principalmente, da sensação boa em ver aquele insignificante raio de luz. Por algum momento fui carregada. Mas foi mesmo, andando que consegui avistar a Igreja , depois a pracinha e a Rua do Armazém.E, neste espaço congruente vi cada qual tomar um rumo. Alguns ficaram por alí. Outros foram para a Vila Pereira. Outros mais, para a Vila Nova e nós à Vila Leão. Passamos pela Vila Ilha das Cobras, pela Volta Fria e continuamos guiados na escuridão por algumas raras lâmpadas incandescentes . A luz maior vinha do céu e de uma lua enorme.
Na entrada da Vila avistamos a casa dos Fava, passamos pela casa dos Pastro com seu lago cheio de carpas refletindo toda beleza da noite estrelada. Ouvimos ainda, os sons que vinham das casas mais próximas... o rádio ligado em música caipira, cachorros latindo ao longe e sentimos até um delicioso cheiro de comida de fogão a lenha. Passamos pela casa do Calónicho e pelo campinho onde um poste de madeira abrigava uma coruja de olho arregalado. Finalmente a entrada da nossa casa ( da minha madrinha), o aconchego quentinho, meu banho de bacia na cozinha, a sopa fervendo, o programa Bonanza na TV, o mingau de aveia antes de dormir, a cama com acolchoado de retalhos e o sono mais gostoso que uma criança de 6 anos podia ter depois daquela grande aventura.
Devo ter sonhado. Provalvelmente com aquele caminhão que ficou lá, no meio da serra, sózinho e aguardando socorro.
Agradeço ao amigo e também ex morador da Fábrica Jorge Marcondes pelo envio da foto que, me fez viajar para um tempo muito especial. Viajei mesmo! E de caminhão “pau de arara!
Que felicidade lembrar disto tudo!
FATIMA CHIATI
Blog: www.fatimachiati.com.br