A “República” de Caieiras - 4ª parte
--Vera Lucia de Freitas e Eduardo Pinto Cunha, agora, voltemos lá no início da rua... Esta primeira casa aqui do lado direito era a do Gino Zanon e Dirce. O Gino era um dos “contramestres” da fabricação de papel, nome este para aqueles sempre do contra tudo e todos (risos). Estou imaginando o meu irmão Walter Olympio ai dentro dessa casa.
--Ué, fazendo o que? Ele era parente do Gino?
--Não, ele era escravo do Gino (risos). Coitado do meu irmão, antes de se empregar na Cia Melhoramentos aos quatorze anos de idade, ele freqüentou uma faculdade e se diplomou em “retalhista” de máquina de papel. Isso lá pelo ano de 1949. Era costume dos contramestres enviarem para suas casas os novatos para trabalhos que nada tinham a ver com as funções para as quais eram contratados. Estou vendo o meu irmão encerando os cômodos dessa casa e depois passando o escovão para lustrar. A esposa do Gino tinha dó dele e dizia que era um serviço “pesado” para garotos. Serviço mais pesado era quando chegava o caminhão com lenhas e o Walter tinha que recolhê-las da rua para o barracão onde elas ficavam aguardando a vez de irem para o fogão à lenha. Isso até que ele gostava, porque, ao terminar de recolher a lenha ele podia ir até sua casa ouvir rádio, um seriado de aventuras. Seria o “Jerônimo justiceiro do Sertão”? Depois voltava para o trabalho de retalhista naquela época que não havia portaria e nem cartão de ponto para os empregados. Aos fins de semana ele se vestia com uma roupinha melhor para impressionar as mocinhas do lugar e elas nem imaginavam que ele era um bom “dona de casa” dos chefes da Cia ahahahahah.
--É Vera, antigamente era assim mesmo, mas, você é mais nova que nós e não deve se...
--Isso mesmo Dinho, a Vera não se lembra dessas coisas. Esta casa de quem era?
--Era do Senhor Walter Kohl, esposa... Filho Ricardinho...
--Teria sido aqui que o Renatão Satrapa me disse que morou por uns tempos aquele alemão médico cientista hitlerato ahahahahahah que dava tapinhas na cabeça dele.
--Isso eu não soube, mas...
--Opa, espera. É o Talico da rádio outra vez. Alô, fala ai, manda vê.
--Viu tão ligando aqui dizendo que o programa está chato. Querem músicas.
--Ah é? Estão querendo forró ou música caipira, né? Ah manda eles... Não, não manda não. Explica que você está gravando este programa para a posteridade. Certo? Tchau. Posteridade... Ninguém mais liga pra isso. Caieiras já era. Os antigos morreram e seus descendentes não querem saber do passado, de histórias, tradições... Estamos aqui bancando tontos, não é mesmo?
--(Risos) Não concordo. Ainda tem pessoas como eu que gostam de relembrar.
--Eu sei Vera, mas, é uma minoria. Hoje ninguém quer nada com nada. Tudo mudou. Por isso, então Dinho, vamos citar os nomes dos moradores e desconsiderar em quais casas eles moraram. O Ronaldo Toigo me enviou uma relação dos moradores daqui e o Renatão me enviou outra. São eles: João Nauer, o velho João Satrapa, Mario Constantini, Amleto Ricciarelli, Augusto Satrapa, Narciso de Grande, Pitombo e outros. Ah, o muito conhecido Castelani morou aqui em quarto de solteiro, daí o nome República. O Dentista Ricciarelli foi quem veio com essa mania de apelidar o lugar de Morumby e isso “pegou”, até o Renato Marchesini entrou nessa (risos). Na relação do Renatão tem fatos a serem censurados. Morou por aqui um tal de Bugalheira conhecido como “desviador” de materiais de construção. Consta que havia aqui umas esposas bem atraentes a se vestirem com shortinhos. Por isso o Renatão e a molecada daqui sempre estavam com olheiras porque, por causa delas eles faziam porcaria, aquela a provocar o nascer de pelos na palma da mão. Tinha a esposa de outro que “andava” com o Manoel, o vizinho do Renatão. É... a Vila República era uma atração para os olhos mais atentos.
--Viu, faltaram alguns nomes como o do Emílio Edga, Severino Gil, Fabio Tomita...
--Pode ser Dinho, mas, se lembrar de todos não é fácil. Olha entre a mata o caminho da piscina dos alemães. Passando pela piscina você vai dar lá no Bairro Chique.
--Isso mesmo e era onde eu nasci e morei.
--(Risos) A Vera se lembra bem de sua infância feliz aqui. Mas, vejam aquele chalezinho antes de chegar à piscina. Teve uma época em que algumas moças daqui da Vila República e outras de outras vilas promoviam uns bailinhos nele. Era ao som de vitrola e elas traziam doces e salgados. Eu devia ser muito bonito (risos) porque, eu era um dos convidados a participar daqueles bailinhos. Sim, os convidados eram selecionados, elas não queriam maus elementos por aqui. Que pena, não me lembro de todas as moças. Mais me lembro das gauchas Marly, Margô e Mirna, pois, mais era eu convidado por elas.
--Nunca soube que teve bailinhos aqui no chalezinho.
--Não sabia Vera? Eu sabia. Eu já era o Sucuri e não queriam cobras por aqui (risos).
--Mudando de assunto, este nosso passeio por aqui esteve a nos proporcionar a lembrança de como eram as famílias. Por dentro das casas pais e filhos eram de verdade pais e filhos. Participavam juntos das refeições, conversavam se entendiam e eram mais íntimos. Hoje cada um fica na sua. Um está num cômodo vendo televisão, em outro cômodo outro está no vídeo game com esses joguinhos idiotas, outro está lendo as “maravilhosas” mensagens no computador e resumindo nem família como família existe mais. Estamos na época do caos familiar (risos). Ninguém mais se entende e o mundo fervilha com tantas idiotices humanas. Bom, Vera e Dinho, o nosso passeio terminou. Obrigado pela boa companhia de vocês neste passado que não volta mais.
--Nós é que agradecemos não é Dinho?
--Isso mesmo Vera, valeu a pena, não?
--Então vamos encerrar. Alô Talico, pode desconectar a transmissão ai na rádio e “bota” musica caipira e forró para os teus ouvintes ai ahahahahahah.
--Os ouvintes estão com razão, pois, foi muito blá, blá, blá, hoje.
--Termina você o programa ai. Agradece os ouvintes do programa “Antiga Caieiras de Nossa Gente” e diga que ameaçamos voltar noutro dia com mais conversa ahahahahah. Tchau Talico e obrigado.
--Tchau e desligo... Agora nossos apoios culturais e...
--E agora Vera e Dinho, querem ir até a capela de São José para ver em que estado ela se encontra? Lembro-me de quando garoto eu vim em algumas missas e fiquei observando os que compareceram. Alguns homens vinham de terno e gravata e se ajoelhavam no chão. Aqui reinava o respeito mútuo entre os moradores. Entretanto, às vezes sou criticado por amigos quando falo que nada é importante e nada se sustenta. A capela está ai abandonada. Em sua maioria o povo daqui já morreu. As casas desapareceram. As amizades, parentescos e o respeito mútuo já eram. Nada se mantém e tudo se modifica. Tudo é transmutação. Agora, até onde vamos parar eu não sei. Nossa... Que desolação (risos). Daqui de cima só vemos lá abaixo a fábrica de papel. Nem parece que aqui existiu um bairro e um povo feliz.
--É mesmo, que nostalgia, não?
--Cuidado Vera, isso traz melancolia.
--Vamos embora agora, a Maria já está me esperando pra jantar.
--Calma Dinho, antes olhe pra tudo isso e dá um adeus.
--Ué, por quê?
--Por quê? Caieiras está no fim, os caieirenses estão morrendo e logo somos nós.
--Ah vai tomar banho. Vira essa boca pra lá.
-- Tem uma música bem antiga que é bem pertinente a isso: “Hei, quando o tempo passar ninguém mais vai lembrar que nós três existimos...” (risos). Vamos embora, então “E a fonte a cantar... Chuá, chuá, e as águas a correr chuê, chuê. Parece que alguém que cheio de mágoa...”
Altino Olympio