Carlos Melo - O Estado de S. Paulo
Tempos voláteis e inseguros são estes. Num momento a calma dos cemitérios, e até parece que a história acabou de verdade na mesmice entediante da polaridade PT/PSDB. Noutro, a fúria e a perplexidade. Depois, o clima ameno e enganosamente tranquilo, para mais tarde tudo ferver novamente. A calma, quando há, é das que precedem os tsunamis. Governantes passam a viver aflitos. Ironicamente, sentem na pele a vulnerabilidade dos desprotegidos que não conseguem abrigar. São tempos novos, estes voláteis, e talvez tenham vindo para alterar definitivamente a lógica e a ordem no reino da política.
Adianta biquinho? Mobilizadas, as ruas podem fazer suco dos governantes, diz autor
O fato é que a água não ferve de repente. Esse ovo de serpente para uns e redenção para outros levou anos sendo gerado. Foi fecundado pelo colapso da política que se faz, a política velha, a política antiga, a política pequena, de modelos passados e retórica gasta. Anacronismo presente nos mais importantes governos do País: o federal, o do Estado de São Paulo e o do Estado do Rio de Janeiro.
Trata-se de um processo que recebeu impulso do sem-número de escândalos que se sucederam até que banalizassem a incúria e a corrupção, que se abrigaram nas metrópoles, definitivamente paradas em congestionamentos de trânsito e mentais, amofinadas pela verticalização e pelo adensamento de corpos e prédios. A água só ferve no ponto de ebulição. Nem antes, nem depois.
E isso ocorreu em junho, com a questão das tarifas de ônibus, a última partícula de calor que fez com que tudo borbulhasse. Um marco: já se fala em "jornadas de junho" como um tempo glorioso que ficará na história. De algum modo representada pelos sem-representação, toda a sociedade foi para as ruas. Curioso... Menos de um mês depois, há certa melancolia motivada pela abstinência da falta de agitação - o banzo dos tsunamis, como se disse. Alguns se inquietam: "Onde foi parar aquela moçada?" E se perguntam: "Parou por quê?" Junho apresentou ao Brasil suas novas "narrativas", termo que também invadiu o cotidiano.
Toda revolução constrói sua linguagem. Esta - que não se sabe se será revolução - está repleta de maneirismos e neologismos. Constrói seus signos e significados e até mesmo já ensaia erguer ídolos. E eles parecem pertencer a outra esfera, uma estética da qual não se tinha notícia. Não são charmosos, tampouco bonitos. Não seduzem como os pop stars do passado. Até espantam. Mas traduzem o sentimento difuso, o desconforto obscurecido pelo triunfalismo petista. São como uma comunidade que se desenvolvesse ao lado do edifício que ruía. Não apáticos, mas com códigos próprios. Não à parte, mas fora do eixo, com seus apocalípticos mais ou menos integrados, mais ou menos cooptados, mais ou menos rebeldes - mas não muito.
Difícil para um sistema político viciado compreender isso tudo e não se surpreender, se antecipar, reagir no tempo e na medida corretos. A presidente Dilma, por exemplo, na primeira vez em que foi à TV se posicionar sobre as manifestações que sacudiam o país, o fez como uma tia contrariada: "Que coisa feia, em plena Copa das Confederações! O que o mundo não dirá de nós?". Mais ou menos foi o que disse, com enorme esforço de sua irritação contida. Depois entrou no embalo, carona mais radical que os manifestantes... Propor uma reforma política - inegavelmente necessária -, genérica e sem articulação alguma é de fato uma "barbeiragem" monumental, como disse Lula.
Jogar os eleitores contra o Congresso Nacional - sim, repleto de erros e culpas - assim, desarticulada, com a cara e a coragem, é mesmo tangenciar a memória de Fernando Collor. Por fim, um plebiscito voluntarioso, de supetão - que só mesmo o PT, para não deixar Dilma no sereno, encampou - é amadorismo ou demagogia. Provavelmente, uma demagogia amadora.
Mas de impiedosa desinteligência foi mesmo o caso de Geraldo Alckmin: de Paris, sem paciência e assessoria, o governador vociferou. Sua primeira reação foi tachar todos de "baderneiros", "movimento político!". Ordem, ordem, ordem! O que teria o governador contra a política? A intempestividade não combina com seu caráter de anestesista. Seria tentativa de cortejar a reação, órfã de Paulo Maluf? A ação foi tão óbvia quanto desastrosa: chamar a polícia, soltar os cachorros. Jogar gasolina na fogueira. Depois se esconder com sorriso amarelo.
Não parou por aí: anunciar o congelamento dos pedágios (sem que ninguém pedisse), cobrar por eixo dos caminhões, desorganizar o sistema, inibir investimentos, isso tudo ficará como símbolo de sua aguda ausência de espírito, retumbante vazio. Ainda que não houvesse clima para aumentos, precisaria anunciar? Mas teve mais: no auge da crise urbana, extinguir a Secretaria dos Negócios Metropolitanos foi de lascar! Muito além do jardim, o personagem de Peter Sellers não faria melhor.
As ruas - não se pode falar em "movimento" - reagem aos solavancos. Seu humor rapidamente faz suco de governantes. O primeiro a virar garapa foi Sérgio Cabral, ironicamente o mais efetivo governante do Rio em muitas décadas - ainda que seja por W.O. Em que pese suas realizações, Cabral vinha numa dinâmica de abusar da sorte, exagerar do escárnio. Tantas fez... Hoje é alma atormentada em permanente penitência, rogando perdão na esteira do papa. Neofranciscano, faz agora voto de humildade. Parece tarde.
Castelos começaram a desmoronar. A presidente Dilma e seu governo de técnicos - até recentemente tão seguros de si, crentes na reeleição e na permanência de sua racionalidade presunçosa - vivem revés inesperado, mas não surpreendente. Dilma, que imaginou pairar sobre o mundo, vê seu prestígio despencar. Hoje, presidente, governo, partido, bases políticas e sociais formam um todo fragmentado e desconexo, sem amálgama. Atordoados, petistas tateiam sofismas. Mas o óbvio é que o Estado não funciona, impostos escorrem pelo ralo. Maior e mais visível, a ineficiência do governo federal é mais colossal e evidente. Dilma é a primeira a ser julgada.
Alckmin e sua administração, de moralidade e eficiência autoproclamadas em campanhas passadas tão repletas de adjetivos para os outros, vê agora no seu olho a trave que apontou nos adversários. Para quem acostumou a ser pedra, tornar-se vidraça dói mais. O constrangimento do governador é tão notório quanto é escabroso o escândalo do cartel organizado nas fuças do governo. Ser logrado em quase meio bilhão de reais é tão extraordinário quanto desviar essa quantia. Quantos mensalões não caberiam nessa sacola? Em qual cueca transportar toda essa grana? A se comprovar o noticiário, restará ao governador escolher se foi enganado ou omisso. De nenhum sairá bem na foto. O que dizer agora de Lula?
Mais uma vez, o governador vocifera: cobrará na Justiça centavo por centavo, etc. e tal. A boca espuma de ódio. Cobrará de quem? Para a biografia, indignação não basta. Inimigos comemoram: "É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar". Fina ironia do destino, frio mingau da vingança. Quem com moralismo fere com moralismo é ferido.
No turbilhão de informação e conexões em rede em que vivemos, essas "narrativas" vão ganhando luzes de epopeia: grandes marchas, rebeldia, som, fúria, violência... Paris 68 rediviva aqui, sem o charme de Sartre, a agudeza de Marcuse, o contraponto de Aron. Sem Paris. O fato é que, agora, tudo que se conecta no ar torna-se sólido e vulnerável aos Black Blocs. O marciano diria: "Leve-me ao seu líder". Mas a liderança é uma mão invisível que destrói vidraças. Todos são servos das tais "narrativas". Se, por definição, a pluralidade é a natureza da rede, como edificar o consenso?
Tucanos e petistas mordem a língua. O roto remendando o rasgado é a síntese dialética. No admirável mundo novo, a velha política se vê paralisada pela miopia que ela mesma produz. O novo emerge de onde menos se espera. A mensagem política mais avançada não vem das vanguardas, mas do papa argentino, simpático e humilde. Tudo é mesmo uma grande contradição. O poder está na comunicação, burocratas não sabem se comunicar. Ratzinger não soube, Francisco se conecta. Fernando Henrique e Lula souberam, Alckmin, Cabral e Dilma se trumbicam, diria Chacrinha. Burocratas, carismáticos às avessas, repelem e espantam, desmancham-se no ar.
Na última quarta-feira, alguns manifestantes voltaram às ruas sob o olhar apreensivo de autoridades paralisadas. Não foram muitos os que resolveram enfrentar o frio daquela tarde-noite gélida de inverno, mas suficientes para retomar o processo de quentura do ambiente político. O maior frio é o que vem da espinha. Ao que tudo indica, até pelo menos a eleição o ritmo será assim: tensão e relaxamento, governos na expectativa. Uma rede de descontentamentos vários, a qual os políticos tradicionais não conseguem alcançar.
A força da manifestação não reside na mobilização física, estritamente. Mas numa comichão, na vontade justificada de reclamar. Até mesmo quem não saiu de casa engrossa o coro, o milagre da internet em banda larga, Mesmo quem não vai às ruas sente a ânsia e é capaz de agir. Há, então, a mobilização em potencial, o manifestante em potência, mesmo em repouso. Na tensão do que pode vir a ser de repente, a qualquer momento, no possível permanente, a opinião difusa e simultaneamente discordante, consenso no dissenso. Como Alckmin, Cabral e Dilma podem conviver com isso? O mundo caiu, e eles não aprenderam a levitar.
Alckmin, Cabral e Dilma - sujeitos tão diferentes - encontram-se igualmente nesse perrengue. Governos aflitos, movem-se com medo das sombras, assolados por fantasmas virtuais e denúncias ocasionais, batalhas no front informacional. Oferecem respostas velhas para perguntas novas, não conseguem contornar o turbilhão que os assalta, não drenam o barco que aderna. Independentemente de circunstanciais vitórias eleitorais, em 2014, o certo é que na política já foram derrotados. Ficaram para trás, perdidos no presente, sem conexão com narrativas do futuro, envolvidos pela bruma de um ontem recente e ao mesmo tempo distante.
CARLOS MELO É CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSPER