Revista VEJA, 19/10/2011
ENTREVISTA: ARMÍNIO FRAGA
Giuliano Guandalini
Em três décadas de vivência diária com os mercados financeiros, o economista carioca Armínio Fraga Neto passou por crises de grande magnitude – ora à frente de fundos de investimento, ora em cargos públicos como a presidência do Banco Central, que ele ocupou de 1999 a 2002. Como teve a missão de preservar patrimônios bilionários durante eventos financeiros cataclísmicos, Fraga está em posição de avaliar o furor da tempestade econômica em gestação no mundo. “O quadro é assustador. Os principais blocos econômicos vivem dias dificílimos” diz. Nesse cenário, ele acha defensável, ainda que ousada, a decisão do Banco Central brasileiro de reduzir a taxa de juros, mesmo com a inflação anual acima de 7%. Aos 54 anos, Fraga é sócio do Gávea, fundo que administra 8 bilhões de dólares e teve 55% do capital comprado recentemente pelo banco americano J.P. Morgan.
O Banco Central (SC) baixou mesmo a guarda no combate à inflação?
O ano de 2010 foi difícil para o BC. Foi um ano eleitoral, o que tradicionalmente implica forte aumento dos gastos públicos. A economia ficou superaquecida. Claramente, o BC começou o ano de 2011 atrasado no combate à inflação e, diante dessa constatação, passou a elevar os juros básicos, a taxa Selic. De repente, em agosto, deu um cavalo de pau e diminuiu a Selic. Ora, é claro que a decisão surpreendeu muita gente. Eu a classifico de ousada. Para muitos analistas, foi o que bastou para acenderem o sinal de alerta, temerosos de que aquela decisão sinalizava com clareza que a inflação não entraria mais em trajetória de queda. Esse é mesmo o papel dos analistas. Mas é verdade também que as circunstâncias mudaram nos últimos meses. Ficou evidente que a economia mundial vem se desacelerando, e tudo leva a crer que esse processo afetará de alguma forma impactante a economia brasileira. Some-se a isso o que parecem ser decisões firmes do governo, primeiro, de conter o avanço nos gastos públicos, pelo menos nos níveis assombrosos do ano passado, e, segundo, de cumprir rigorosamente a meta do superávit primário. A circunstância externa e as determinações do governo aliviam mesmo a tarefa do Banco Central de conter a demanda aumentando a taxa de juros. O somatório desses fatos produz um pano de fundo, no atual momento, capaz de justificar o corte na taxa de juros.
É razoável para o BC agir com base em uma conjectura, a de que a crise externa vai nos afetar?
Há riscos, evidentemente. Mas o BC é muito bem informado sobre assuntos internacionais. Seu presidente e seus diretores participam de frequentes reuniões com os presidentes dos principais bancos centrais e autoridades econômicas do mundo. A portas fechadas, essas pessoas são muito francas em seus prognósticos e análises. Isso torna o BC brasileiro detentor de informações melhores do que as disponíveis para o mercado em geral.
Sem dúvida, mas há a sensação generalizada de que a prioridade da autoridade monetária agora é preservar o crescimento econômico, mesmo que isso signifique tolerar mais inflação...
De fato, chamou atenção a maior proximidade do atual presidente do BC, Alexandre Tombini, com o Ministério da Fazenda e também com a própria presidente Dilma Rousseff. A princípio, não considero isso negativo. Eu vivi situações semelhantes quando fui presidente do Banco Central. Desde que o BC consiga trabalhar sem pôr em jogo o mandato de perseguir a meta de inflação, a proximidade de que falei acima pode até ser positiva. Mas, se o diagnóstico usado pelo BC para baixar os juros, embora lógico e razoável, não se mostrar acertado e a inflação não cair, a situação mudará radicalmente.
De que maneira?
O mercado está sempre testando o Banco Central – se ele falhar, terá de reconhecer isso na prática, tirando o pé do acelerador e até mesmo, eventualmente, voltando a aumentar a taxa de juros. Num quadro desses, se o BC fraquejar e não agir, ficará claro que o regime de metas de inflação foi mesmo abandonado. Portanto, ainda não existem elementos para crucificar o BC e decretar que o regime de metas foi abandonado. Vamos acompanhar os próximos meses com atenção. Aí então saberemos de fato se as suspeitas de abandono da meta procedem ou não. Quero crer que não.
Sob a proteção do anonimato, altos funcionários do governo dizem que o objetivo é baixar a taxa Selic dos atuais 12% para menos de 10% no próximo ano. Isso é crível?
Se for verdade, estaremos entrando em terreno minado. Mesmo falando em público, acho que o governo brasileiro de modo geral deveria ser bem mais sisudo ao tratar de política econômica. Estão falando demais. Esse ruído atrapalha o trabalho do Banco Central. Infelizmente não podemos fixar, neste momento, uma meta para a taxa de juros. O que é razoável e desejável é ter compromisso inequívoco com a queda dos juros a longo prazo, sabendo que para chegar lá é preciso construir as condições necessárias. Ao estabelecer uma meta de queda de juros em prazo tão curto, qualquer BC arrisca perder credibilidade. O resultado é previsível. Os investidores ficam com o pé atrás, o risco Brasil – ou seja, a percepção dos perigos de aplicar dinheiro no país – aumenta. Piora ainda mais o quadro quando os governos tentam capitalizar politicamente as decisões sobre juros dos bancos centrais. Essas atitudes criam ansiedade, abalam as expectativas e atrapalham até mesmo os próprios objetivos dos governos.
Por tudo o que o senhor viu e ouviu de falatório exagerado, o caso brasileiro tem conserto?
Não acho que as autoridades já causaram um dano permanente à credibilidade do Banco Central. Pelos modelos estatísticos do próprio BC, a convergência da taxa de inflação para o centro da meta só ocorreria em 2013, o que justifica uma dose maior de cautela. Mas não se pode pôr tudo em modelos. Alexandre Tombini tem reafirmado com ênfase sua previsão de que a inflação cairá para 4,5% em 2012. Parece difícil, mas o leque enorme de incertezas na economia mundial tem seu peso. Estamos correndo riscos, sim. Isso não é segredo. O BC vive isso em seu dia a dia.
Quando o BC prioriza o crescimento, a que riscos se sujeita?
Existe um certo consenso de que o crescimento depende, em última instância, de investimentos, eficiência do estado e melhora na educação. O BC consegue, quando muito, não atrapalhar. O BC pode e deve suavizar as oscilações da economia, mas a taxa média de crescimento de longo prazo dependerá daqueles fatores sobre os quais os bancos centrais não têm influência direta. A principal função do BC é manter a inflação em um patamar baixo e previsível. Em segundo lugar, quando preciso, deve tentar combater os efeitos de uma recessão. O certo é que não há, a princípio, conflito entre combate à inflação e crescimento econômico.
O Brasil está preparado para enfrentar um recrudescimento da crise internacional?
Dentro do possível, acredito que sim, bem mais que no passado. O Brasil é uma economia pouco aberta. Esse é um aspecto negativo, mas neste momento pode ser algo favorável. O câmbio é flutuante, o que reduz a probabilidade de sucesso de eventuais ataques especulativos à moeda. Temos mais de 350 bilhões de dólares em reservas internacionais. Os bancos, de modo geral, estão capitalizados e o sistema financeiro é bem administrado. Não temos condições de evitar completamente os efeitos de uma deterioração da economia mundial, mas temos condições de amenizar esses efeitos.
Se estamos tão bem, por que a cotação do dólar dispara sempre que há um susto vindo de fora?
O Brasil tem um peso crescente nas carteiras mais especulativas de investimentos. Quando a crise se torna mais aguda, há uma liquidação forçada e o dólar dá suas estilingadas. Além disso, sofremos recentemente – e falo aqui também como presidente do conselho da BM&FBovespa – com medidas que engessaram o mercado financeiro. Não sou contra medidas prudenciais para evitar o endividamento externo de curto prazo. Esse foi o tema da minha tese de doutorado, concluída em 1985. Tenho ojeriza a excesso de capital de curto prazo. Mas o governo foi além do necessário. Essa mão pesada não ajuda quando há piora do quadro externo. O empresário brasileiro precisa ter acesso ao capital mais barato de fora para investir. Não faz sentido penalizar a aplicação de estrangeiros em ações.
O governo ampliou seu arsenal de ações contra o aumento das importações, encarecendo carros e bens de consumo importados. O argumento é que outros países também procuram se defender de concorrência desleal, em especial da China. Isso é do jogo?
Pode ser que sim, em um ou outro caso específico. No caso da China, justifica-se uma atitude comercial mais firme. O mundo inteiro sofre com a concorrência dos asiáticos. Isso em boa parte é mérito deles. Mas, no agregado da economia, é negativo. O protecionismo é um mecanismo que diminui as opções do consumidor, tira dinheiro da população e dá poder excessivo a setores econômicos beneficiados. Recorrer a barreiras mostra uma predileção do governo por favorecer certas empresas em detrimento do cidadão. Sinto hoje o país acompanhando o pêndulo global e abraçando ainda com mais ardor o capitalismo de estado – que nunca deixou de existir aqui. É um modelo com ênfase em beneficiar empresas escolhidas, e não em deixar o mercado funcionar. É um mau modelo. Combinado ao protecionismo, é ainda pior.
Ao elegerem Dilma Rousseff, os brasileiros deram seu voto a esse modelo estatal?
Penso que sim. Foi de fato a escolha do eleitor. A própria presidente disse isso em seu discurso de posse. Mas não acredito que precisamos achar que é do interesse geral a existência de um estado grande e ineficiente. O governo ocupa um lugar enorme, mas não investe no setor privado nem o estimula a assumir riscos. É um quadro propenso a nos frustrar. Todo mundo quer crescer, mas não existe mágica. É necessário investir mais e melhor, além de educar melhor. Se isso for feito em ritmo lento, o crescimento será lento.
Qual deve ser o papel do governo na economia?
De vez em quando, a curto prazo, o governo pode dar um empurrão. Mas é ilusão achar que isso leva ao crescimento duradouro. Os governos precisam atacar as questões profundas de longo prazo. Os governos precisam assegurar a existência de condições ideais para incentivar investimentos, sem os quais não se cresce sem inflação. Crescer com inflação é ilusório também, porque a economia acaba encolhendo. No momento, não vejo esse equilíbrio de políticas de curto e longo prazo nem nos Estados Unidos. Os americanos têm a economia mais eficiente, criativa e flexível do mundo, mas precisam fazer reformas. O déficit público é enorme, a dívida pública tem crescido rapidamente e os gastos com saúde estão em trajetória explosiva.
A Europa está ainda pior?
A Europa tem se mostrado incapaz de se antecipar aos fatos e apresentar uma reação convincente. Já se sabia que a União Europeia passaria por momentos difíceis. A união é incompleta. É monetária e aduaneira, mas não fiscal nem política. As respostas serão de difícil execução e graduais. Os instrumentos de política econômica estão no limite. Em tese, nos Estados Unidos a recuperação seria mais simples. Mas o país está dividido e polarizado. Não há ambiente político para reformas. Parece só haver chance para isso depois da eleição presidencial do próximo ano. Até na China há sinais de desgaste. Como o governo chinês não é muito transparente, as análises tendem a convergir para o pior cenário. Os grandes blocos da economia mundial vivem dias dificílimos. É um quadro assustador. Há muito risco no ar.