19/08/2020
O mês do cachorro louco

Dia 17 de agosto ela deveria seguir a tradição já mais que consolidada na família.

Por 13 anos os protocolos foram seguidos a risca.

No início do mês de agosto, todos os anos, os preparativos  começavam.

Cada um sabia exatamente o que fazer, de que maneira, o grau de expectativa dos demais e os passos sincronizados que deviam seguir.

E aqui entre nós, não é a toa que este mês é conhecido como  “mês do cachorro louco”. 

Da  0 (zero) hora do dia 17 (dezessete) de agosto até  a 0 (zero)  hora do dia 18 (dezoito), todas as palavras, em qualquer forma, idioma, escritas ou não, faladas ou não, lidas ou não eram expressamente proibidas de circular num mínimo de 2 metros de distância das pessoas designadas por herança de sangue ou irmandade adquirida em virtude de casamento. 

Assim, recolhiam-se da bancada do mundo letrado e andavam descalças e livres por algum lugar mudo, cego e surdo,  chamado “asilo do silêncio”.

Em verdade não se tratava de silêncio, em sentido estrito, e sim da ocultação da parafernália da mescla infinita de letras-pensamento, que faziam das histórias daqueles 56 anos do “falecido” uma ladainha, resmungada em tom gravíssimo em clave de fa. 

O blablabla ordinário devia ser substituído inexoravelmente, naquela quarentena de 15 (quinze) dias, por discrição silenciosa, entendida como ausência de som (aqui sim, em sentido amplo).

E a organização era tal que nunca foi necessário um código de conduta.

Talvez porque os participantes, uma única vez nos 365 (não escreverei este número) dias do ano (subtraídos os 17 (dezessete)  dias), ou melhor, 348 (zzzzzzzz) dias  deveriam entrar em “clímax coletivo hipnótico da perfeita convivência “. 

As constelações de Perseus e  Virgo se emparelhavam  detalhadamente, sem deixar arestas para fora dos dois compassos em riste diagonal que compunham uma espécie de triângulo mal acabado envolvendo a imagem.

Nesta época, dada a simbiose perfeita entre a missão especial designada ao Grão Mestre da obra prima e os adornos triviais de natureza mundana que o circundavam, o Universo abria um pórtico pelo qual o clã desfilaria o saudosismo daquela vida de outrora.

E assim, ainda que,cada qual absorto no desempenho de suas atividades, os integrantes da homenagem póstuma,  compartilhavam suas mentes antagônicas num ato calado de superação das manifestações xexelentas da natureza humana.  

 “Voilà”!

Dia 18 (não vou escrever caligraficamente mais, ok?) de agosto estariam todos sassaricando com seus balangandãs em suas vidas, como se nada houvesse passado.

Era bonito de ver e sentir a orquestra silente tocando sob  `a luz de Perseus e Virgo, enquanto chegavam os peregrinos carregando alguns calhamaços de páginas do livro de suas vidas. 

Era notável que algumas folhas estavam amareladas, um pouco apagadas, encharcadas de lágrimas secas. 

Cada um relia suas anotações que correspondiam ao ano transcorrido entre a primeira lua nova do ano antecessor e a primeira lua nova do ano corrente do mês de agosto, enquanto Perseus escutava sentado em seu trono de descanso, ao lado de Zeus histórias e estórias daquela gente.

Virgo, um pouco afastada passava o tempo das narrativas, controlando a balança da justiça. 

Temperamental e impulsiva, vez ou outra ela ensaiava uma sentença cabal.

A compulsividade em ser politicamente correta, insuportavelmente metódica, histericamente organizada, marcavam a sede de alguns sussurros de advertência `a moda “virginiana pesiquica” 

Durante as 24 horas do dia de agosto, o céu invariavelmente seria iluminado pela luz da Lua e pelos pontos de brilho das estrelas desenhando Perseus e Virgo.

Ao badalar das 23:59 horas do dia 17 de agosto, cada senhor, senhora, senhorita, recebia uma bolsa azul desenhada e confeccionada em formato de retângulo, onde levavam folhas de papel almaço brancas nas quais se propunham escrever um pouco mais da trajetória por vir.

Depois das “selfies” e fotos para a publicidade  da bolsa  do “da Lua” : fim.

A sensação de luto cumprido.  

Este ritual rotundistico esta propositalmente conjugado no passado.

O motivo conto aqui abaixo.

Dia 14 de agosto 2020.

MMR decidiu passar o dia em trabalho de campo. 

Biólogo marinho, mergulhou para abraçar os peixes e receber condolências dos seus camaradas baiacus aproveitando para coletar material de pesquisa. 

Sempre funcional, impressionante!

Entrou de corpo e alma no seu reduto mágico: o mar. 

Deixou os óculos, celular e o mundo dos humanos.

RR não dormiu e começou a madrugada anestesiado pelos sentimentos, num mal-estar  entre a embriaguez e o martírio das lembranças.

AR  despertou com o coração tão minguado que decidiu vestir-se de preto e pintar as unhas da cor favorita de seu ídolo: amarelo ovo. 

Logo cedo, implorou um horário no salão de beleza de um amigo. Sempre impecável!  

MR decidiu que conversaria com ele, de homem para homem!

CR acomodou-se na cadeira em que sentou para tomar café da manhã , em companhia de fotos antigas.

AM dirigiu cabisbaixo até o escritório, indagando sobre a existência da vida e a necessidade da morte.

CRM e PRM saíram às 5 da manhã para uma corridinha básica. 

Cada um reservado em seu canto obscuro e secreto buscando conforto da mesma dor.

Como sempre havia sido, como deveria ser.

O sepulcro secreto do luto!

Mas ela surtou! 

Fez tudo o que não faria! 

E desmontou a burocracia daquele grupinho muito “inhooo” de arrumadinho. 

Todo mundo já viu, ou ouviu contar (da comadre da vizinha que mora em cima da  mercearia do cemitério), sobre o desequilibrado da família em velório.  

O descontrolado chega perto do defunto todo desmilinguido, arranca o veuzinho, assopra as florzinhas que cheiram como “século passado”,  e abraça o “de cujus” jurando o suicídio se ele não regressar do mundo dos mortos.

Aquela coisa de pobre, metade da família  puxa de um lado o “encomendado do Anchieta” (Casa de Repouso na década de 90 da cidade de Santos, destinada aos atormentados) e a outra metade tenta arrumar o morto no terno de madeira. 

Resumindo, o apogeu da deselegância! 

Ela incorporou  todos os papéis numa cena majestosa.

Confesso que não esperava dela  mais que meia dúzia de lagrimitas que rolavam discretamente pelo canto dos olhos, enquanto pensava onde encontraria jornal para limpar o espelho que seguia embaçado depois de quase uma hora de lustro. 

Sempre plena na resiliência sobre finitude da vida!

Mas eu vi!

Ela acordou após a noite conturbada de sono, com os olhos esbugalhados, a cara deformada (provavelmente o botox que ela pagou uma fortuna, tinha água na seringa!), sem bom dia, péssimo dia, qualquer sinal que ainda habitasse um ser com cérebro naquele trapo humano. 

Dei um grito tímido de espanto: “o que houve querida?”, que ela ignorou e seguiu balbuciando vocábulos ininteligíveis entre aquela remela toda.

Entrou no closet, abriu uma caixa de fotografias e atirou pelo tapete.

Fiquei chocada. 

Uma aguacero em cima das fotos, ela mergulhando naquela poça, a cachorra lambendo os álbuns, um furdunço.

Tentei dar um alô que era segunda-feira, dia de trabalho. 

Mas nada a despertava do ataque de pânico pós traumático ( deve existir isto em algum dicionário psiquiátrico).

O funesto, deplorável mesmo, que não esquecerei até meu último suspiro aconteceu quando pelo meio de seu queixo, uma saliva lânguida  começou escorrer (tipo favo de bala derretida). 

“Deve ser raiva! Ela não quis tomar a vacina ano passado”.

Faltava música, que em poucos minutos já se escutava em todo o bairro. Piorou muito!

Aquele música pareceu causar algum tipo de possessão sobrenatural. Ela apertava as mãos na cabeça e murmurava  “ não é verdade”.

A título de curiosidade :nunca mais escutarei “Tormento d’ Amore”, muito menos na versão de Agnaldo Rayol em dueto com Charlotte Church. 

Para meu alívio, sentou numa esquina do quarto, no chão, claro! 

Arrastou uma mesinha criado-mudo, colocou encima a xicara de cafe, um rolo de papel higiênico e cobriu-se com o edredon de inverno (aqui o calor está derretendo pneu de caminhão). 

Com o computador e  celular.

A esta altura, toda finesse das memórias póstumas desmereceu-se envergonhando as 3  próximas gerações do morto.

O cenário desmoronou.

Perseus arrastou a poltrona para sua caverna e foi assistir “ 13 Reasons Why”, enquanto Zeus preparava a caipirinha de limão que o filho gostava. 

Virgo enfiou uma maçã na boca e 2 de cada lado da balança da justiça, ligou o ipad e achou prudente fazer a quinta meditação da série : “mude sua vibração em 21 dias”.

O “da Lua” deu-se por vencido e foi criar uma nova bolsa com porta máscara. 

Tirou de circulação a outra depois do fracasso do ritual “augustico” (como dizia ele).

E para quem acredita ou não, o desalinhamento das estrelas com o cotidiano causa armadilhas tragicômicas.

Sem Perseus, nem Virgo, nem Zeus, o impossível e inimaginável acontece.

Num “mesmíssimo”  momento, com alguma defasagem de segundos dada a distância da origem da comunicação, surgiu uma mensagem na tela de celular de cada um dos ditos.

O remetente era conhecido de todos ali. 

O destinatário das memórias póstumas: Persio, com selfie e tudo.

O status: só por hoje!

E foi assim que MMR perdeu o material coletado para sua pesquisa, que escorregou de suas mãos justo no momento que viu a foto vivinha dele. 

MMR segue em observação na casa dos pescadores que o socorreram acreditando que o delírio foi causado pelo canto da sereia que ele conversou na noite anterior.

RR  contactou a ONU para resgatarem o tio dado como morto há 14 anos atrás numa missão de paz no Oriente Médio (assim ele contou).

AR enquanto buscava os óculos para conferir a foto, bebeu acetona e ainda está  procurando a chave da porta do Harry Porter que trouxe seu pai de volta.

MR fez voto de celibato e viaja descalço pelo Caminho de Compostela.

CR e AM não conseguiram assinar a autorização para divulgação de informações. 

Mas sabe-se que foram visitados por um comitê designado para averiguação de possível abdução alienígena.

CRM e PRM depois da revelação, foram vistas em companhia de uma tribo indígena nas margens do rio Amazonas num “ritual de passagem”. 

Contam por aí que na beira do caixão no dia do velório, alguns segredos de estado foram confessados ao falecido! Vai ver estão pedindo para a luz guiá-lo para o além.

E ela?

A mulher do lado de lá?

Ela está tentando lembrar as últimas palavras que pronunciou antes de criar um perfil com o nome e foto de seu pai.

E papai? Tá ótimo! Tão orgulhoso da proeza da filha!

O pessoal lá de cima achou brilhante a ideia dele de usar aplicativos terrenos de celular e afins, para comunicação dos espíritos (vivos e não vivos).

Os gastos com caneta e papel diminuirá, sem mencionar o sinal de Wi Fi infinitamente  melhor para receber e enviar mensagens.

 

E eu estou com medo que ela decida me contar como ressuscitou seu pai e enlouqueceu sua família.

Ass. A Mulher do Espelho

Daniele de Cassia Rotundo

 

 


 

 

 



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