No cinema o desespero não foi ficção
A maioria das pessoas de hoje não viveram naquela simplicidade de quando não havia tanta sofisticação tecnológica como existe agora. Lá no passado o cinema era uma mágica sem igual. Era um espetáculo, muito mais para a criançada que vibrava de emoção enquanto assistia a filmes com cenas engraçadas como de comédias ou os antigos seriados, filmes de aventuras exibidos em partes ou capítulos. É fácil imaginar cenas de pais e crianças sorridentes caminhando pelas ruas até o cinema e mesmo imaginá-los na fila para comprar seus ingressos. No saguão de entrada era o “dar água na boca” dos doces, das balas e chocolate ‘diamante negro’.
Inaugurado em 1927 o Cine Oberdan foi à glória do Bairro de Brás em São Paulo por muitos anos. Onze anos depois de sua inauguração, na matinê do dia dez de abril de 1938 na tela estava sendo exibido, “passando” o filme “Criminosos do ar”. A sessão estava lotada, boa parte por crianças. Já quase no final do filme quando dois aviões se chocavam no ar, alguém da platéia gritou “FOGO”. Possivelmente em alusão ao filme e isso desencadeou uma desesperada correria para abandonar a sala do cinema. O pânico tomou conta da enorme sala que comportava 1600 pessoas.
Apesar de a sala ser grande, suas saídas rumo ao hall se davam por duas escadas estreitas. Crianças e adultos desesperados em fuga do fogo correram para as escadas e naquela hora não houve gentilezas, só houve o “salve-se quem puder” proibindo o amor ao próximo. Em poucos minutos aconteceu à tragédia ocasionada pelo pânico. Crianças se atiraram pelas escadas, mas, foram ultrapassadas por adultos que, maiores, pisoteando tomavam à dianteira demonstrando “muito cuidado com as crianças”. Sapatos, chapéus, carteiras, tudo foi deixado para trás.
Quando o socorro chegou ao local, a cena vista foi de uma tristeza indescritível. Inúmeras pessoas feridas pelo chão, muito sangue e um amontoado de cadáveres pisoteados. O impacto da tragédia foi tão forte e triste que provocou comoção em toda a cidade. Imediatamente após, o cinema foi interditado e a polícia iniciou a perícia no local. Apurou-se que tudo começou devido a uma diarréia. Um garoto esteve passando mal e precisou ir ao sanitário. Porém, antes de lá chegar já foi aliviando suas necessidades pelo trajeto.
Ao lá chegar deparou-se com as luzes desligadas. Foi quando ele acendeu um fósforo e colocou fogo numas folhas de jornal para poder enxergar onde estava e também deixou a porta do sanitário entreaberta para “ganhar” um pouco da claridade vinda da tela do cinema. Teria sido nesse momento que alguém da platéia viu aquelas chamas das folhas de jornal e gritou “FOGO”. Isso foi “levantado” pela perícia que encontrou as páginas de jornal queimadas e a bermuda do menino com resíduos fecais que serviram para a conclusão do caso.
No trágico acontecimento muitos pais perderam um filho e houve pais quem perderam até dois, como no caso dos irmãos Pricolli de oito e de doze anos. Também, a morte do menino Enrico Mandorino, fez sua mãe sentir-se culpada. Numa entrevista de décadas atrás, ela contou que o jovem Mandarino, naquela tarde queria ir ao jóquei que ficava no Bairro da Mooca. Ela considerou perigoso e ordenou-o a ir se divertir no cinema e ele nunca mais voltou pra casa. Essa mãe viveu enlutada até morrer em 1980.
Na tragédia do Cine Oberdan morreram trinta e uma pessoas. Trinta eram crianças e jovens menores. A única pessoa adulta foi uma mulher de nome Maria Pereira. Ela estava no cinema com sua filha ainda bebê. Quando começou a correria ela também tentou “fugir do fogo” (incêndio que não houve), mas foi derrubada próxima das escadarias do cinema. Para que sua filha não morresse esmagada ela protegeu sua filha sob seu corpo. Maria Pereira, mãe de sete filhos morreu esmagada, mas, conseguiu salvar a sua pequena Joaninha.
O poder público promoveu um enterro coletivo e todas as vítimas foram sepultadas numa cerimônia única numa área do Cemitério do Brás (Quarta parada). Naquele dia uma enorme multidão acompanhou o funeral. Apesar da tragédia, o Cine Oberdan continuou exibindo filmes por muitos anos, encerrando suas atividades em 1960. O prédio do cinema ficou fechado por alguns anos até que em meados de 1970 ele foi transformado numa loja.
Como o triste fato do engano do “grito do fogo” ter ocorrido em 1938 num cinema, talvez, poucas ou raríssimas pessoas ainda possam existir para se lembrar e comentar o caso. Tudo na vida é assim. Tudo fica no passado e lá fica em “quarentena” até quando o esquecimento do passar do tempo a tudo exclui ou “deleta”.
O cinema veio a existir e com isso muitos pensam que suas vidas parecem ser o enredo de um filme com eles mesmos sendo os artistas principais. Representam bem o papel de “eu sou engenheiro, sou industrial, sou médico, sou economista, deputado, torneiro mecânico, presidente, advogado, sou católico, sou crente, sou empreiteiro, padeiro, banqueiro, sou padre, pastor... E são tudo o que se possa imaginar até quando a morte vem com o seu arpão e decreta o “The End” do filme “Fim da Ilusão” (risos).
Altino Olympio